Um amigo, companheiro da noite em tempos idos, pediu-me para republicar este texto.
Faço-o com gosto.
As criaturas da noite
Com neblina, geada ou frio de amolgar ossos, com breu, com céu limpo ou estrelado, luarenta ou cálida, a noite é poiso de homens e mulheres que por fascínio ou ofício protelam o sono, até ao branquear da aurora.
São as criaturas da noite.
Nela movimentam-se como se o dia raiasse em cada um dos seus passos.
Nas fábricas complementando as máquinas, nos jornais compondo e redigindo a notícia, nos hospitais vigiando a doença, nos quartéis expectantes face ao rastilho dos fogos.
Nas ruas, hoje motorizadamente, outrora palmilhando-as, os agentes da autoridade velam pelo sono tranquilo da maioria, defendem os legítimos direitos sobre os bens, sobre a propriedade de cada um.
Dantes, o polícia agasalhado no seu pesado sobretudo escuro, nas gélidas noites deste Inverno longo, era figura carismática que ornamentava a noite da cidade.
Taciturno, solitário, temido e respeitado no seu enfrentamento não só com intempérie, mas também com a marginalidade, era vê-lo sempre presente nas ruas e vielas.
As tabernas, depois os cafés, hoje mais os pubs ou as discotecas, são sítios da noite, lugares onde se sonha, onde se esquece, onde se bebe, onde o amor se espevita.
A noite é pretexto de conversas férteis, de diálogos lúcidos onde a imaginação se enamora da poesia na celebração dos grandes momentos da vida.
As descobertas, os mistérios, a magia, a aventura, o feitiço, o ódio, a amizade, o ciúme, o amor são companheiros prediletos da noite.
É de noite que normalmente se nasce.
É de noite que habitualmente se morre.
A saudade bate quási sempre de noite à porta do nosso peito.
Se a farra, o festim, o baile são atributos da noite, a solidão fere muito mais fundo quando a noite cai.
Por ela trespassa o vício – a euforia do álcool, o fumo que sobe à memória e as narinas expulsam, a droga que semeia flores que num ápice murcham em mentes atormentadas.
Para os doentes o pôr-do-sol é prenúncio de escuridão que espreita, do sofrimento, do tempo com horas em demasia.
Para os amantes, a noite é sempre uma vertigem imparável e doce até ao centro da terra.
Quando trabalho noite dentro, escutando o silêncio envolvente, passa-me pelos olhos o mar liso e infindo, reflectindo brilhante o luar, nas margens do equador quando fiz a longa viagem para o outro continente onde vi chitas exóticas envolvendo corpos de seda e sóis irreais em louvor à natureza.
Na cabeça arrumo no sótão mais distante os problemas dos outros e, refrescado pela brisa, caminho na noite em direcção à cama.
Antes de adormecer pego no genial Pessoa, mais precisamente no seu amigo Álvaro Campos, breviário de há muito na minha mesa-de-cabeceira.
E em tom de prece, pela milésima vez, releio algumas estrofes da sua ODE À NOITE.
Adormeço então em paz, sereno, com o mesmo sorriso interior que aflorava quando aconchegado colocava a cabeça no colo de minha mãe.
António Roque