I
E ela a falar-me do existencialismo ateu e eu a dar conta que a minha perna estava a tocar na dela e a sentir o telemóvel sem som a vibrar no bolso das calças ou as chaves do carro, não sei bem, mas qualquer coisa vibrava no bolso das calças e a pensar que me apetecia fazer amor com ela ali mesmo, naquele espaço tão agradável e segurava o copo da cerveja, não sabia já qual o número e olhava para a cor da sangria dela com os morangos misturados no champanhe numa combinação perfeita como preliminares de qualquer coisa que teria um desfecho óptimo. E pensava que apesar de ser uma pessoa séria e nunca dada a estas coisas, conseguiria naquela noite amá-la mesmo ali, no meio daquela gente toda, ignorando espaço e tempo e perguntava-me a mim mesmo se na hora da verdade conseguiria alhear-me a esse ponto, sentindo-me só eu e ela no meio da multidão! E como eu achava que sim!
Passou-me pela cabeça confessar-lho, como se tivesse um padre à minha frente, mas nesse dia eu já tinha cometido outras gafes e fiquei calado, não fosse dar tudo a perder só porque o álcool ou a testosterona, que vinha a dar no mesmo para o efeito, me estava a toldar as ideias.
Então não é que à hora do jantar ela me perguntou se eu não tinha reparado que ela tinha ido arranjar o cabelo, no exacto momento em que comia um cheesecake de framboesa e eu a olhar para o licor vermelho a escorrer naquela montanha branca e a pensar, Deus me perdoe, como seria bom se a minha língua percorresse aquele líquido sublime, mas …
Claro que sim, que tinha dado conta, mas como é que se pode dizer a uma mulher que se gosta dela mesmo com pêlos e despenteada?! E mesmo que se tenha coragem para dizer isso, ela nunca vai acreditar em nós, no máximo vai dizer que somos uns queridos, embora pense que somos uns palermas, como é que se pode gostar de uma mulher com pêlos e despenteada?!, mas vai ficar sempre com a certeza íntima de que não somos honestos.
Em boa verdade, não cheguei a perceber se ela sentiu ou não a minha perna a roçar na dela, quando estávamos no bar, porque o discurso continuou e não fez nem uma vírgula nesse momento, mas as mulheres são mesmo assim, fingem tão bem que nunca conseguimos distinguir se é uma coisa ou outra, diria até que é coisa impossível de saber, se isto fosse coisa que existisse.
E depois o erro seria monumental, porque se lhe dissesse naquela altura que a desejava, ela ia concluir que eu não estava com atenção nenhuma ao que ela estava a dizer, embora as mulheres falem sempre para elas e não para nós, nunca perdoam a falta de atenção. Nunca tomaria como um elogio que eu estava era perdidamente apaixonado e que a desejava a toda a hora, até num bar, enquanto ela bebia champanhe com morangos. Porque as mulheres são mesmo assim, dão uma importância infinita a pormenores sem interesse nenhum e quando lhe dizemos que não conseguimos viver sem elas, elas aproveitam para marcar a depilação.
E, verdade seja dita, o existencialismo ateu até é um tema que me é querido, mas não àquela hora, por favor, nem naquele lugar onde temos de falar alto para nos fazermos ouvir. As mulheres são de um despropósito pontualíssimo! Chego a pensar, porque sou fã da sua inteligência, que fazem isto de propósito para testar o limiar da nossa irritabilidade.
Mas a coisa já tinha passado das marcas muito antes do jantar. Então não é que na exposição da tarde eu me tinha esquecido de a apresentar ao artista!
Esquecido é a pior forma de o dizer, como é que eu me ia esquecer da pessoa que, sem eu saber como ou perceber porquê, tinha acabado de mudar a minha vida?!
O que tinha acontecido é que eu me tinha entusiasmado no reencontro com um amigo a quem não via há algum tempo e no ombro de quem tinha chorado a perda da mãe das minhas filhas e agora estava ali à sua frente, feliz, acompanhado daquela que julgava ser a razão mais óbvia do meu sorriso, da minha alegria e até da razão com que o tinha abraçado como se dissesse, sem dizer, voltei! Mas isto é uma coisa que as mulheres nunca hão-de perceber! Por mais que a gente lho explique, é uma pura perda de tempo! O nosso passado, por mais cruel que tenha sido, nunca é o presente delas! Elas têm de estar sempre em primeiro lugar.
De forma que, quando o entusiasmo do reencontro passou, ela já estava amuada como uma criança mimada e tinha motivos para isso. Como é que eu fui cometer uma falha daquelas! Afinal eu não tinha ido lá sozinho! Afinal eu é que me tinha comportado como uma criança que tinha ficado órfã. Por isso pedi-lhe desculpa, mas não resultou. Nunca resulta com as mulheres. Se for com os homens, a gente faz os disparates e se reconhece os erros, se se arrepende e pede desculpa, passamos à frente, mas as mulheres são mais exigentes, com elas temos de ser perfeitos, à imagem e semelhança de Deus. Por isso fiquei com uma dor no peito, uma mágoa, não pelo que fiz, mas pela dor que lhe causei, pelo sofrimento que lhe incuti. Afinal, que diabo, era uma questão de educação. Básico mesmo!
E quando, depois do bar, a fui levar a casa, a minha vontade era de lhe dizer que gostava de passar a noite com ela nem que fosse para a ver dormir, sentar-me no sofá que provavelmente teria no quarto e esperar que o sono viesse enquanto ela mergulhava na profundidade dos sonhos que uma mulher sempre tem e a que um homem, por mais esforço que faça, nunca terá acesso porque elas não nos deixam entrar nessa intimidade que acham que lhes pertence e que nós nunca havemos de entender porque somos limitados mentalmente. A maior parte delas, está convencida que somos a preto e branco, fabricados em série e que temos espermatozoides na cabeça em vez de neurónios. Não digo que em certos momentos a coisa não seja verdade, como naquele momento no bar em que ela segurava no copo de sangria e me falava no existencialismo ateu.
O certo é que não fui capaz, dei-lhe um beijo, acompanhei-a à porta e quando cheguei a casa, peguei no telemóvel sem som que tinha no bolso das calças e que continuava a vibrar.
Quem seria, àquela hora?!
À noite não consegui dormir, não estava satisfeito com o meu desempenho, que diabo, afinal do que é que eu tinha medo?!
No dia seguinte arranjei um pretexto qualquer para me encontrar com ela e armado em machão perguntei-lhe se queria namorar comigo, metade-metade, meio a sério, meio a brincar, que um homem na minha idade também já não lida muito bem com estas coisas. E eis então o que eu não estava minimamente à espera: ela disse-me que ia pensar na proposta e ria-se como uma criança a quem lhe tinham acabado de contar a mais engraçada das anedotas.
Claro que, para um homem que tinha andado na guerra em que as balas vêm de todos os lados e o instinto de sobrevivência nos permitiu isso mesmo, o estar ali àquela hora, eu ri-me também e perguntei-lhe de quanto tempo é que precisava para pensar, ao que ela respondeu, sem pensar, que para responder a isso também precisava de tempo.
Em circunstâncias normais eu tinha-a mandado à fava sem sequer me dar ao trabalho de lhe dizer isso, mas o problema era que as circunstâncias eram completamente anormais, pois que eu estava completamente apaixonado por ela e assumi, acto contínuo e mais uma vez, que eu não sabia era fazer as coisas!
Onde é que eu tinha a cabeça? Como é que alguém diz isto a uma mulher sem sequer lhe levar um ramo de rosas ou outra pirosada qualquer?! Como é que um homem nesta idade abre o coração a uma mulher sem qualquer resguardo, sem qualquer protecção?! Não, de facto eu andava a pedi-las, eu punha-me a jeito, como muito bem dizia um grande amigo meu.
E agora, o que é que fazia? Mas a coisa não ficou por aqui, eu ainda consegui fazer pior. Depois disto ainda a convidei para passar férias comigo. Aí ela disse de imediato que sim, mas eu não reagi. No estado de anestesia em que estava, aquilo soou-me a uma brincadeira de gosto duvidoso.
No dia seguinte, perante a ausência de notícias, não resisti a perguntar-lhe se ainda estava a pensar na minha proposta e foi aí que a minha auto-estima se estatelou definitivamente no chão, como se tivesse caído de um 12º andar. Respondeu-me que ainda não tinha tido tempo para pensar! Tinha acabado de me responder, sem ela dar conta ou exactamente ao contrário, com um plano diabólico para eu dar conta. Com as mulheres nunca sabemos se estão a pensar no mesmo que nós ou no seu contrário ou até nas duas coisas ao mesmo tempo, que elas conseguem proezas que nem o mais inteligente dos homens é capaz de equacionar. Comecei a perceber o jogo. Aquilo era uma roleta russa modificada, tinha nas seis câmaras do revólver, seis balas, um verdadeiro jogo de azar. A primeira acabava de ser disparada. Agora a escolha era minha, ou ficava para assistir à carnificina ou dava o jogo por terminado. Se quisesse continuar a jogar, a única coisa que podia fazer para salvar o que restava da minha dignidade era mudar as regras do jogo. E foi o que fiz. Poker, foi a opção. Com sortinha, saia-me um par de ases, se não fosse com ela era sem ela!
Disse-lhe que deixasse lá, que eu retirava a proposta. É claro que não respondeu, orgulho de mulher ferida é pior que erva daninha! Aquilo já tinha ido longe demais, do meu lado claro está. Então faz algum sentido oferecer de comer a quem tem fome e o outro dizer que vai pensar! É porque terá provavelmente fome de tudo menos daquilo que nós lhe estamos a oferecer e eu não tinha mais para dar, a não ser aquela coisa estranha que me fazia olhar fixamente para o copo de sangria com morangos e champanhe que ela tinha na mão, naquela noite no bar e pensar como seria bom tê-la nua nos meus braços e cobri-la de beijos até gastar a saliva, a minha e a dela. E a porcaria do telemóvel que não parava de vibrar e eu já o tinha desligado não sei quantas vezes!