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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

03
Mar21

A Grande Aventura

(SCENAS DA GUERRA)


1024-antonio granjo

 

 

António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

 

 

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

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Um dia fora do acampamento

 

Saimos, eu e o meu companheiro de tenda, logo de manhã, do acampamento, na disposição de visitarmos a pequena cidade situada no sopé da colina e a linda praia que se projecta no horizonte azulineo do mar, além da massa verde da floresta, como uma visão de encantamento.

 

Detivemo-nos um pouco junto duma barraca onde se celebrava o culto protestante e donde vinham os compassos solenes de um cântico religioso; e, mais adiante, junto duma messe de sargentos, donde vinham as notas alacres dum «cake-walk», atacado num piano pelas mãos dextras dalgum «cow-boy» do Canadá.

 

O «tramway», esperava. Era uma carripana digna de entrar para um museu arqueológico, e que, á falta duma mão misericordiosa que a levasse para os Inválidos, ia fazendo tristemente o transito de passageiros entre as duas cidades.

 

Um cabo português fazia a policia, exigindo as licenças. Perto de mim sentou-se uma rapariga de olhos verdes e sorriso largo, o rosto torpemente pintado, e com um chapéu que podia também ir para os Inválidos. Era uma refugiada belga. Andava por ali aos encontrões, babujada de todos esses homens que desciam do acampamento após os violentos exercícios duma instrução intensiva, ébrios de uma hora de goso, devassando com os olhos lúbricos os vestidos de todas as mulheres, rangendo os dentes á vista duma perua nua, como bestas ferozes uivando de cio.

 

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Alec (Coutts) Fraser; Etaples, França; 1900. - 'Rio abaixo, Etaples'

 

Os pobres belgas! O que se diz dessa pobre gente que os canhões alemães arremessaram para a França como rebanhos tresmalhados á busca dum refugio onde pudessem repousar a cabeça aflita de expatriados! Em volta deles faz-se uma mefítica atmosfera de suspeição, e o epíteto de espiões envolve tanto os que salvaram a civilização pela resistência ao invasor, como os que, acomodados sob as ordenanças de Bissing, encolhem os ombros e deixam correr os fados. Pobres refugiados belgas que eu encontrei por toda a parte, enxotados como animais imundos, recebidos por favor nos «ateliers» e nas «brasseries»!

 

Deslisavamos através da floresta. Corvos passeavam pelas aléas. Ao fundo duma avenida, impunha-se a fachada, de linhas arquitectónicas, do Grand Palais, onde uma duqueza inglesa á sua custa instalara e sustentava um hospital de sangue. As «misses» passavam, com os seus vestidos brancos, as suas faces maceradas de freiras confundindo-se com a brancura do linho dos colarinhos ou das toucas. Um grupo de oficiais ingleses, com os cintos envernizados, de grévas e esporas, abatendo com os «steaks» os ramos mais baixos das arvores marginais da estrada, caminhava em silencio.

 

Desembocámos na rua de Paris. Portugueses, ingleses, escoceses, australianos, canadianos, franceses, russos, belgas, cruzam as fardas e as continências, sorriem para as mulheres, param junto das montras e das vitrines, elevando-se no ar uma massa confusa de sons, feita de todas as vogais, de todas as consoantes, de todos os ditongos, como um cântico longínquo entoado por uma multidão cosmopolita.

 

— Oh! Granjo!

 

E uns braços amigos abrem-se desmesuradamente, salientando o peito forte dum meu comprovinciano. Conversamos, rimos. Uma «matelote», com a sua touca engomada abrindo em leque a meio da cabeça, o seu chalé de ramagens brilhantes semelhante ao das «chalras», com o seu ramo de flores na mão, passa por nós. Olha com certa surpresa para as minhas avantajadas proporções de carregador de alfandega e para os meus simples galões de alferes, e sorri. Na sua boca carnuda, esse sorriso toma um sabor peninsular, uma expressão viva e quente, e os seus olhos profundos, a sua testa branca, o seu cabelo preto, apartado ao meio, dão-nos a ilusão de que passa uma mulher portuguesa num costume de Carnaval.

 

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Scenas de  Guerra - Etaples -  Henry Ossawa Tanner

 

Vamos até ao Boulevard de la Mer. Um biplano repousa no areal. Na fimbria do horizonte as velas dos barcos de pesca marcam largos triângulos no ceu azul pálido. É a baixamar. Cordas de agua suja escorrem pela praia. Ao fundo do «boulevard» o «Atlantic-Hotel», onde está instalado um hospital de convalescentes, dá uma forte impressão de magestade. Em face do mar quieto, cujas ondas veem morrer num doce murmurio na praia, a sua fachada monumental faz pensar num convento. Podiam pôr-lhe o nome de Hotel do Silencio.

 

O biplano levanta voo, plana alguns minutos sobre a praia e indireita para o hangar duma escola de aviação próxima. A mesma refugiada belga que veiu comigo no «tramway» encosta-se á grade do passeio e olha indiferentemente a linha colorida das «vilas» e dos «chateaux».

 

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Almoçamos no «Grand Hotel des Bains». Ao lado da sala de jantar, escoceses sapateiam uma dança regional. Da rua vem o rumor das vozes babelicas dos que vão e veem, á espera da hora em que tenham de encarar a morte. Fico com a impressão de que toda essa gente, todo esse museu de fardas, pertence já á historia, pertence já ao Passado, e que todas aquelas vidas, já do domínio da campa, andam ali por favor e mercê das Parcas.

 

Depois do almoço, damos uma volta pela cidade. No portão de um «chateau» via-se o nosso escudo. Era uma republica de oficiais nossos. Ao metermos da rua de Moscou para o Boulevard Daloz, agitam-se vários braços numa janela, e novamente chega aos meus ouvidos a saudação amiga:

 

— Oh! Granjo!

 

Subimos. Estala o «champagne». Abre-se uma garrafa de autentico e velhíssimo Porto. Como devo partir para a frente dentro de poucos dias, com os abraços de despedida misturam-se os desejos de boa sorte. Já ia na rua, e ainda as vozes amigas repetiam:

 

— «Bonne chance»! «Bonne chance»!

 

Jantamos na pequena cidade que deu o nome ao acampamento. Ha, em França, em frente de todas as estações um hotelsito. Tomamos uma mesa nesse Hotel de Ia Gare.

 

Defronte de nós jantavam, numa mesa redonda, oito oficiais ingleses. Dois deles eram condecorados, um trazia o distintivo de ferimento em combate, e alguns mostravam no ombro, passando sob a platina e o braço, os cordões devidos a dois anos de guerra. Eram porventura veteranos do Yser e do Somme. Os seus olhos haviam presenciado as grandes hecatombes e os seus braços haviam-se erguido para apontarem aos soldados o caminho da vitória. E porventura voltariam ámanhã para a frente, para essa predestinada Bélgica, onde as grandes batalhas recomeçavam.

 

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Harry Van Der Weyden – Estuário em Etaples

 

Neste intervalo de repouso, aqueles guerreiros modernos falavam alto, soltavam estrondosas gargalhadas, diziam equivocas amabilidades ás criadas que serviam á mesa. Acudiram-me á lembrança as scenas das estalagens dos velhos romances de capa e espada, em que o tinir dos ferros se sucedia sempre ao tilintar dos copos.

 

O que seriam aqueles homens antes da guerra? Dos oito, apenas um, o mais novo, um alferes, parecia uma criatura polida e educada, saida da alta burguezia ou dalgum velho ramo da fidalguia inglesa. O sorriso discreto e afavel, as mãos finas, os olhos serenos e pensativos, o nariz levemente aquilino, as palavras medidas e cortezes, o respeito com que o ouviam os camaradas, faziam pensar nalgum baronete que a tempestade houvesse atirado para aquela mesa modesta dum hotel barato. Os outros tinham a aparência de antigos chefes de oficinas ou antigos caixeiros viajantes, que as necessidades da guerra haviam transformado em condutores de homens e que esperavam o momento da paz para regressarem ás suas habituais ocupações.

 

Os guerreiros modernos! Sem duvida, a guerra moderna perdeu muito do seu pitoresco, porque deu lugar á destruição do militar profissional. Oh! como seria bem mais interessante, em vez de vêr desfilar um batalhão inglez, vêr desfilar um terço espanhol!

 

A guerra industrializou-se. Ameaça mesmo eternisar-se. E a não ser as saias riscadas dos higlanders tudo é banal.

 

Quem me diz a mim que estes homens, trajando uma farda que muito bem pode ser um fato de passeio, não estão comendo o seu jantar depois de ganharem o seu dia num escritório ou numa fabrica?

 

 

 

Continua na próxima quarta-feira…

 

 

 

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