A GRANDE AVENTURA
(SCENAS DA GUERRA)
António Granjo
A GRANDE AVENTURA
(SCENAS DA GUERRA)
6
Na catedral de Aire-sûr-la-Lys
Aire-sûr-la-Lys é a cidade franceza que mais anda na memoria dos portuguezes. Pelas suas ruas estreitas, pelos seus pequenos largos, onde um ou outro palacio dos tempos de Filipe II põe uma nota d'arte, curtiram-se tristes horas de saudade, dolorosas horas de revolta, febris horas de anciedade, pesadas horas de desalento.
Essas longas horas de França, quem as descreverá algum dia?...
...Os que marchávamos para a frente, nesse primeiro dia que passavamos em Aire, demorámo-nos a ver a cidade. Ao dobrar para a Grande Place, junto de uma casa renascença, encontrámos um conhecido —um capitão de artilharia que estacionava em Therouanne, com o seu grupo, à espera de ir para a frente, com a 2.ª divisão.
— Que ha por ahi que ver?
— V.V. ainda não foram ao quartel general?
Olhámos uns para os outros. Ninguém tinha conhecimento de que o quartel generalse houvesse instalado em Aire-sûr-la-Lys.
O artilheiro endireitou para a Grande Place, e, parando em frente duma livraria:
— Et voila!
Os portuguezes haviam feito dessa livraria ponto de reunião e por isso lhe davam a designação de quartel general.
Alguns soldados compravam postaes ilustrados. Uma rapariga loira, dos seus 14 ou 15 anos, trocava confidencias com um alferes. Dentro do balcão, uma senhora de luto dizia preços a uma outra rapariga, palida e elegante, de olhos escuros, desse escuro-castanho que é uma transição para o verde sujo.
O artilheiro fez a continência à ingleza e apresentou solenemente:
— Madame, le sous-lientenant Granjo, ancien deputé...
Tive ocasião de constatar que não é apenas em Portugal que as instituições parlamentares estão em franca decadência. A grande frase só despertou na madama um leve sorriso atencioso.
Era umas dessas famílias que se encontravam por acaso na zona de guerra e exploravam a retaguarda. Quando a guerra se resumia à marcha e à manobra, os exércitos levavam consigo as vivandeiras. Na atual guerra as vivandeiras foram substituídas por esta gente.
A senhora de luto ostenta umas ancas desmedidas e dá à boca pintada, quando fala, um geito pretencioso que lhe oculta as comissuras dos lábios. A rapariga loira, que tem o o ar desagradável das precoces, é sua filha. A rapariga de olhos escuros, que parece estar sempre representando uma pequena comedia, é sua sobrinha.
A mãe perdeu o marido na guerra, a filha é uma pobre inocente que geme na orfandade as desgraças do destino inclemente, a sobrinha é uma refugiada vitima da brutalidade alemã, violentada por um monstro boche, numa das aldeias das regiões invadidas, entre o estrondo dos desabamentos e a crepitação dos incêndios.
A filha continua a confidenciar com o alferes. Nos seus olhos azuis, desmezuradamente grandes, os vidros, as estantes, os vultos pareciam refletir-se como sobre duas pequenas poças d'agua choca. No rosto flácido, como num fruto pisado, parece começar a surgir essa sombra vaga, subcelular, que precede a corrução. Em todo o seu corpo havia essas linhas disformes das coisas feitas pelo artificio e pela força.
— Au revoir, madame...
— Au revoir, monsieur...
Vagabundeámos pela cidade, examinando as gárgulas ou os frisos duma antiga casa espanhola, vendo os souvenirs de guerra que enchem as montras, ou ouvindo narrar casos das trincheiras, em que tem sempre a palavra a Morte, ou casos da retaguarda, em que tem sempre a palavra o Amor.
Depois do almoço, e antes que chegasse o caminhão que nos havia de conduzir ao Q. G. B., fomos visitar a catedral. E' uma enorme mole de tijolo, obra ainda da dominação espanhola, dedicada a S. Pedro.
Quando entramos, viam-se filas de gennflectorios no transepto, alguns já ocupados por senhoras, envoltas em crepes, com os rostos metidos em mantilhas pretas. Estatuas de Joana d'Arc, por todos os lados, interpretando-a como pastora, como guerreira ou como santa, e uma grande estatua, em mármore, de S. Pedro, faziam pensar vagamente num museu. No primeiro altar, do lado do Evangelho, havia uma imagem de Nossa Senhora, com um desses meninos-jesus, de faces rubicundas, côr de maçã camoeza, dos nossos santeiros.
Pendendo para o transepto, dependurada do coro, uma grande bandeira franceza, com esta inscrição bordada a oiro: Dieu sauve Ia France!
Os genuflectorios povoaram-se de vultos negros. Dois oficiaes inglezes acordaram os ecos das naves com os tacões ferrados. Alguns homens, velhos, de luto, olhando o altar-mór, de joelhos e com as mãos postas, rezavam recolhidamente.
Sobe ao púlpito um padre. Persigna-se, murmura uma oração. Os dois oficiaes inglezes observam a tela dum retábulo. A voz do padre mal se ouve a principio. Em frente de nós, um vitral, representando um episodio bíblico, refulge numa orgia de côr. Pouco a pouco a figura do padre anima-se e a sua voz vae-se elevando, lentamente, como uma nuvem que se vae erguendo. Canta um hino à Patria, à grande e eterna França, filha dileta da Igreja, que os pecados dos homens puzeram em tamanho perigo e em tão escura turbação. A sua voz eleva-se mais e mais, sem exaltação, sem artificio, como um bronze tangido mais forte; e, pondo os olhos nas sagradas cores da bandeira, apertando o coração com as mãos ambas, o padre concita todos os francezes à defeza da Patria, num tom firme, imperativo, metálico, como uma voz de comando ou como um toque de clarim. Fez-se um silencio. O padre descreve a invasão, a derrota, o milagre do Marue. A sua palavra acende-se como um facho, quando se refere à retirada alemã, à corrida para o mar. Os seus lábios tremem, as suas faces tornam-se extremamente palidas, quando se refere aos mortos. Mas a palavra continua a sahir-lhe lentamente da garganta, com um acento que penetra as almas como um estilete. Dirige-se às mães, para que tenham o orgulho dos seus filhos mortos nas linhas de fogo; dirige-se às irmãs, para que peçam a Deus que nunca faleça a coragem a seus irmãos; dirige-se às noivas, para que tragam sempre no seio, junto da imagem do filho da Virgem, o retrato dos que se batem com elas no coração. Os mortos sentar-se-hão à mão direita de Deus Padre, todo o poderoso, gosando da plenitude da gloria e da bemaventurança; os vivos verão os grandes dias da Vitoria, entre hinos e apoteoses.
Uma ou outra mulher soluça. Os olhos dos velhos que rezam prégam-se à bandeira com uma fixidez que tem alguma coisa de ferocidade. E na penumbra das naves as palavras do padre cahem como pingos ardentes, como centelhas de sangue, como gotas d'alma.
Os dois oficiaes inglezes fizeram estremecer novamente o silencio com os seus sapatões. 0 padre desapareceu. As vozes dum órgão resoaram pelas abobadas, como a refrigerar e consolar aquelas almas aflitas que a eloquência do padre havia sobreexcitado.
Algumas senhoras tinham-se já levantado e as suas faces, onde havia ainda vestígios das lagrimas, brilhavam duma serena formusura. Mas duas continuavam soluçando, as cabeças enterradas no veludo do jenuflectorio.
Esperei que estas também se levantassem. Havia alguma coisa de extranho, de violento e de grande na dor dessas duas mulheres.
Quando descobriram o rosto, reconheci que eram as creaturas da livraria da Grande Place.
Continua na próxima quarta-feira…