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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

12
Mai21

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)


1024-antonio granjo

 

António Granjo

A GRANDE AVENTURA

(SCENAS DA GUERRA)

 

13

 

Nota: A GRANDE AVENTURA - (SCENAS DA GUERRA) é um pequeno livro que resultou da participação do ilustre flaviense António Granjo na I Guerra Mundial de 1914-1918, que deixamos aqui em episódios, escritos no português da altura, incluindo erros e gralhas tipográficas.

 

 

criancas na guerra.PNG

Crianças na guerra (autor desconhecido)

 

 

Acantonamento de Penin-Mariage

 

 

Os inglezes puzeram a esta herdade o nome elegante de Skipton-Castle. E' o tipo comum da «ferme». Um terreiro com uma depressão quadrada ao meio, revestida de tijolo, para a nitreira; a casa da residência do «fermier» ao fundo, em frente da entrada; as dependências á roda.

 

A herdade foi abandonada nos primeiros dias da invasão, e como o refluxo da enorme vaga alemã parasse á distancia de alguns dois kilometros, os donos ou os rendeiros preferiram deixar-se ficar para o interior, ganhando a vida tranquilamente, a arriscarem-se á existência de inferno que levam os poucos civis que por aqui continuam agarrados ao seu torrão.

 

A casa da residência foi aproveitada para a messe e instalação de alguns oficiais, e por cima, num largo sobrado destinado á arrumação dos utensílios de lavoura, acomodou-se um pelotão. Numa das dependências, aquela que corre sobre a estrada, funcionava, quando estavam aqui os ingleses, um cinematógrafo. Meteu-se aí outro pelotão.

 

A' entrada vê-se ainda uma taboleta, tendo a letras vermelhas: «Grenad's School». Nas terras de semeadura, que se estendem para além do pomar, e onde se vêem ainda bocados de trincheira, exercitaram-se os melhores granadeiros ingleses. Os ingleses teem ainda nesse campo de instrução um posto de telegrafia sem fios e um posto de observação aerea.

 

Os telhados da herdade são de colmo, em pendente vertical, dando ao conjunto o aspecto amaneirado e pretencioso dum «chalet».

 

As cozinhas rodadas, onde se está fazendo o rancho dos soldados, fumegam sob as copas do pomar. As peras e as maçãs, cujas películas verdes reluzem ao sol, entre as folhas, como dorsos de reptis, aguçam já a gula dos soldados. Um soldado nu, com uma esponja que mergulha num balde, delicia-se com a frescura da agua e sorri para cima, para o sol.

 

Durmo, num pequeno quarto, com mais dois oficiais. As camas são as mesmas da primeira linha. Somente a rede de arame está menos esticada, mais bamba, porque, havendo mais tempo para dormir, desforram- se nestes dias de apoio as longas horas, os infindáveis dias de vigília em frente do inimigo.

 

A minha companhia está hoje de prevenção, e por isso, depois de almoçar umas lascas de presunto e umas fatias de queijo, deitei-me e consegui dormir regaladamente.

 

Acordei tarde, jantei, e dei um passeio pela estrada, a que os ingleses deram o nome duma das suas rainhas. Uma criança que encontrei junto duma casa meia arruinada, fazendo um ramo, emquanto uma bataria anti-aerea cercava um aeroplano alemão de «schrapnells», fez-me parar um pouco e lembrar-me dessas coisas tenras, as crianças e as flores, que havia alguns dias tinham desaparecido da minha vista. O que será esta geração, criada sob o fragor do canhoneio, presenciando continuamente o horror, vendo espadanar por todos os lados o sangue, e vendo cair do ceu, em vez das bênçãos de Deus, os torpedos e as granadas incendiarias?

 

Seriam 10 horas quando entrei no acantonamento. Os foguetes subiam de extremo a extremo do horizonte; e de vez em quando, dos lados da Bélgica, chegava aos ouvidos o trovão rolante.

 

Os meus dois camaradas estavam já deitados. Como a minha companhia estava de prevenção, tirei apenas as botas, pus o equipamento no chão, á cabeceira, e deitei-me de costas por cima das mantas.

 

Os meus camaradas dormem, inteiramente entregues ao sono, como as sombras se entregam inteiramente á noite. Pela janela, donde as vidraças e os caixilhos desapareceram, entra, por entre as cortinas de lona, o luar. No compartimento onde está o Posto de Socorros um maqueiro ressona. Ouve-se um leve murmúrio de vozes no pequeno quarto onde dormem os medicos do batalhão, o dr. Fradique e o dr. Ruivo. Um feixe de raios luminosos brinca nas colunas de madeira do fogão, sobre cujo abaco luzem ainda os restos duma «garniture». Um dos oficiais é um alferes miliciano do Porto, estudante de direito, e que leva a guerra um pouco como leva o seu curso—sorrindo. E' o alferes Araujo. Pequenino, pálido, olhos de azeitona, dilatando as narinas sensuais á aproximação de uma mulher, e repregando energicamente os musculos da face á aproximação duma granada, foi o meu companheiro ideal dessas longas horas de prova. O outro oficial é um meu patrício, do quadro permanente, o alferes Videira, eternamente indignado contra a falta de disciplina e organização dos nossos e patrioticamente clamando pela adopção dos ferreos métodos da Germania.

 

Ambos dormem um sôno bem merecido.

 

O alferes Araujo meteu a cabeça debaixo das mantas e engrunhou-se como uma criança cheia de frio. O alferes Videira dorme com os lábios abertos e uma respiração quase imperceptível. De cima, do sobrado, onde está instalado um pelotão, vem de vez em quando o rumor de corpos que se mexem sobre a palha.

 

Quanta gente já passou por aqui? Parece-me ver no tecto, onde algumas teias de aranha, aos cantos, me dão a impressão de cabeleiras dependuradas, as sombras dos heróis de Vieille Chapelle e Neuve Chapelle, cujos corpos juncam por aí fóra esses campos e que também dormiram sobre estas mesmas camas um sôno bem merecido.

 

Pela meia noite um rouxinol começou a cantar. Levanto-me e chego á janela. Debruço-me sobre as duas tabuas que a tapam até meio. Uma linha de agua corre paralelamente á parede. Num sitio em que a agua empoça, a lua retrata-se vaidosamente. Um bocadinho á direita vêem-se as cruzes dum pequeno cemitério. Os galhos dum amieiro pendem sobre as cruzes. E' neste amieiro que o rouxinol canta.

 

Na noite silente não passa um rumor. Apenas a grande voz murmurante da terra adormecida nos chega aos ouvidos da alma, e um ou outro foguete sobe silenciosamente, denunciando a primeira linha. Uma estrela mais brilhante parece deslocar-se no ceu, como o farol dum aeroplano.

 

O rouxinol canta. Ponho-me a escutá-lo. Uma briza fresca, quase molhada, acaricia a face e produz na folhagem dos amieiros um sussurro de pequeninos lábios que falam baixo para não acordarem os heróis que dormem.

 

As notas elevam-se na atmosfera luminosa, graves e solenes, como uma prece. Dir-se-ia um padre resando um salmo pelos mortos. O luar parece iluminar melhor o pequeno cemitério. Quase distingo as inscrições fúnebres. Os amieiros parecem acompanhar, pianissimo, a oração do rouxinol.

 

Uma bataria pesada rompeu bruscamente fogo, fazendo um teste. Os clarões das quatro peças rasgaram através do luar violáceo rastos sanguíneos, e a sua voz portentosa fez estremecer a terra. Depois, tudo recaiu no mesmo silencio religioso.

 

O rouxinol soltou, neste silencio religioso, algumas notas baixas, como os ecos dum cântico perdendo-se numa nave. Em seguida houve uma pausa. O côro dos amieiros subiu um pouco mais forte.

 

O rouxinol continuou a cantar, noutro tom. Já não era a elegia, era qualquer coisa de uma narração heróica, em que as notas metálicas vibravam entre estrofes sonoras. Ora o cântico era uma vaga frase bemolada, como o passo duma patrulha distante ou como o bater opresso do coração duma sentinela sentindo na sombra o bafo do inimigo; ora, de repente, parecia o choque de duas baionetas que se disputam. Uma pequena pausa parecia o minuto eterno que separa um encontro decisivo; e uma onda de notas mais altas, enchendo todo o espaço, parecia a voz heróica de toda uma fila que avança ao assalto.

 

Por fim, o cântico gradou-se num gemido débil, qualquer coisa como um fio que se parte ou como uma bala que se espeta na terra. Dir-se-ia a voz flebil dum coração moribundo que se extingue na noite como o suspiro duma folha ou como a palpebra duma estrela.

 

E toda a noite o rouxinol cantou, desfolhando as suas notas, como pétalas sonoras, sobre as cruzes brancas do pequeno cemiterio, ora como um responso piedoso, ora como um hino de gloria.

 

Merecerei eu, se morrer nesta terra estranha, ao menos, os cânticos de algum desses rouxinóis, a quem a natureza deu uma voz mais formosa que a voz humana e que são os sumos sacerdotes da noite e do mistério?

 

(Continua na próxima quarta-feira.)

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