Chá de Urze com Flores de Torga - 113

Chaves, 26 de Agosto de 1991
Viver clandestinamente. Que outra maneira airosa tem um poeta de o ser neste mundo de hoje, senão a parecer uma coisa por fora e ser outra por dentro? Mas sê-lo, então, de verdade, frontal e desassombradamente, com a prova insofismável da poesia.
Miguel Torga, in Diário XVI

Curral de Vacas, Chaves, 3 de Setembro de 1991
À semelhança de tantas outras que me ocorrem penosamente à lembrança, também esta terra, infelizmente, perdeu a identidade. Mudou de nome, alindou as moradias, secou-lhe no largo o negrilho centenário que a tutelava, deixou apagar o forno do povo, pôs fim às representações do Auto da Paixão, que a notabilizavam e aqui me trouxeram pela primeira vez. Com todas as raízes cortadas, ninguém se orgulha mais do tapete de bosta que lhe almofadava os passos logo ao nascer. Cada morador, com quem falo e comento a degradação, parece ter perdido a memória das antigas feições. Até o patriarca, que foi durante a vida inteira titular da figura de Cristo no drama sagrado, e era pelo ano adiante a figura carismática da povoação, no que diz e me diz é um estranho a si próprio, um zé ninguém indigno da majestade que dantes lhe nimbava a rude fisionomia de cavador. Nem o consigo ver, como vi, a morrer santamente na consternação de todos pregado na cruz do calvário, nem, depois, a festejar alegremente com os amigos, lascas de presunto e copos de vinho tinto, a sua ressurreição.
Miguel Torga, in Diário XVI


