Chá de Urze com Flores de Torga - 124
Alturas do Barroso, 27 de Junho de 1956
Entro nestas aldeias sagradas a tremer de vergonha. Não por mim, que venho cheio de boas intenções, mas por uma civilização de má-fé que nem ao menos lhe dá a simples proteção de as respeitar.
Miguel Torga, In Diário VIII
Alturas do Barroso
Montalegre, 28 de Junho de 1956
Feira do prémio. As elegâncias bovinas da região num concurso de beleza. Mas coisa a sério! Cada vedeta examinada e medida com um rigorismo de meter Hollywood num chinelo. Torci quanto pude por uma bezerra ruiva – Deus me perdoe a oculta transposição antropomórfica que se estaria a operar no meu subconsciente, fiz de jarrão à mesa do júri, apertei a mão aos donos das beldades eleitas, e, no fim, quando esperava ver coroada com uma chega de toiros a minha abnegação pecuária, arma-se tamanho sarilho entre duas povoações donas das bisarmas à altura da façanha, que parecia o fim do mundo. No meio de negociações complicadas, em que pus toda a diplomacia de que sou capaz – a escolha do terreno da luta, a verificação de que não havia navalhas de ponta e mola embutidas nas hastes dos cornúpetos, etc.,etc. -, insofrida, a virilidade humana antecipou-se à virilidade dos animais. Nas barbas da autoridade, dispensou galhardamente os actores contratados e, em vez duma turra de bois, ofereceu-me o espectáculo mais sensacional ainda de uma turra de gente. Com esta vantagem para mim: metido também na dança.
Atónito no meio da insólita floresta de varapaus, tratei de me defender como pude das bordoadas, sem medir a grandeza da generosidade, e até propenso a considerá-la abusiva. Mas logo que a tempestade amainou, e tive de estancar o sangue no lanhaço de um dos heróis, testemunhei-lhe o meu alarmado reconhecimento. A resposta veio num simples sorriso sibilino, que interpretei desta cândida maneira: já que eu estava tão interessado em conhecer as coisas por dentro…
Miguel Torga, In Diário VIII