Chá de Urze com Flores de Torga - 29
Poemas Ibéricos – O Pesadelo – 4ª parte
Nesta quarta e última parte dos Poemas Ibéricos de Miguel Torga, deixamos apenas os poemas, sem qualquer comentário da nossa parte.
Pesadelo de D. Quixote
Sancho: ouço uma voz etérea
Que vos chama…
Ibéria, dizes tu?!... Disseste Ibéria?!
Acorda, Sancho, é ela a nossa dama!
Pois de quem hão-de ser estes gemidos?!
Pois de quem hão-de ser?!
Só dela, Sancho, que nos meus ouvidos
Anda o seu coração a padecer…
Ergue-te, Sancho! Quais moinhos?! Quais?!
Ai! Pobre Sancho, que não sabes ver
Em moinhos iguais
Qual deles é só moinho de moer!...
Não Passarão
Não desesperes, Mãe!
O último triunfo é interdito
Aos heróis que o não são.
Lembra-te do teu grito:
Não passarão!
Não passarão!
Só mesmo se parasse o coração
Que te bate no peito.
Só mesmo se pudesse haver sentido
Entre o sangue vertido
E o sonho desfeito.
Só mesmo se a raiz bebesse em lodo
De traição e de crime.
Só mesmo se não fosse o mundo todo
Que na tua tragédia se redime.
Não passarão!
Arde a seara, mas dum simples grão
Nasce o trigal de novo.
Morrem filhos e filhas da nação,
Não morre um povo!
Não passarão!
Seja qual for a fúria da agressão,
As forças que te querem jugular
Não poderão passar
Sobre a dor infinita desse não
Que a terra inteira ouviu
E repetiu:
Não passarão!
Exortação a Sancho
Senhor meu, Sancho Pança enlouquecido,
Servo vencido
Na terra sonhada,
Tem a coragem da verdade nua:
Olha esta Ibéria que te foi roubada,
E que só terá paz quando for tua.
Ergue a fronte dobrada
E começa a façanha prometida!
Cumpre o voto da nova arremetida,
Feito aos pés de quem foi
O destemido herói
Da batalha de ser fiel à vida!
Nega-te a ser passiva testemunha
Do amor cobiçoso
Que os falso namorados
Fazem crer impoluto e arrebatado
Àquela que reflecte o céu lavado
Nos olhos confiados.
Venha o teu grito de transfigurado:
Ai, no se muera!... E a donzela acorda
E renega o idílio traiçoeiro.
Venha o Sancho da lança e do arado,
E a Dulcineia terá, vivo a seu lado,
O senhor D. Quixote verdadeiro!