Chá de Urze com Flores de Torga - 95
Verin, 2 de Abril de 1968
No alto da torre do castelo de Monterrey, a pairar sobre a veiga do Tâmega, iço ao sol primaveril de Espanha a bandeira do patriotismo instintivo, e arreio-a logo a seguir, racionalmente. O guarda confiou-me a chaves do baluarte — quem o diria noutros tempos! —, e não pude evitar o impulso irreflectido. Teve o bom senso de me chamar à ordem. Lá em baixo, na cidade, milhares de patrícios, que vieram a um desafio de futebol, abarrotam os carros de contrabando. Bacalhau, bananas, farinha triga, pão, conhaque, queijo, compotas, rebuçados. Um saque inconsciente, pago com pesetas do mercado negro. «A fome…», penso com os meus botões. A fome que todo o português teve, tem, ou teme vir a ter. A fome que nos levou à Índia, ao Brasil, e nos faz chafurdar agora nos esgotos de Paris. Fome que não é desonra, quando confessada, mas que nenhum de nós confessa, como não confessamos outras misérias. Fomos civilizar, emigramos por amor à aventura, sabe-nos bem iludir o fisco. Mais nada. E é essa nossa falta de humildade que agora me pesa arrobas na consciência, a contemplar o desdém da grandeza castelhana e a ouvir o rumor da pilhagem. Ora assim peado da alma, que posso fazer mais do que enrolar no coração o altivo estandarte da independência pátria, e resignar-me a pertencer a uma comunidade de lazarados, convencidos de que têm o rei na barriga?
Miguel Torga, In Diário X
Chaves, 8 de Abril de 1968
Quanto mais apertado me sinto na prensa da vida, a estalar de desespero por todos os lados, mais necessidade tenho de escrever. Os desafios de viva voz — que a raridade de ouvidos atentos e compreensivos vão, de resto, tornando impossíveis — nada resolvem, e sã até contraproducentes. Saem da boca às golfadas, intempestivamente, e deixam na alma uma penosa sensação de esvaziamento sem alívio. De tão informe, a lava apenas testemunha a ígnea actividade do vulcão. Mas, na escrita, os sentimentos ordenam-se na ordem das palavras. O que se diz, adquire, na disciplina da frase, a claridade e a economia que faltavam ao impulso comunicativo. EW a consciência encontra repouso nesse rigor e nitidez, que dão transparência e inteligibilidade ao próprio rosto absurdo da vida.
Miguel Torga, In Diário X
Chaves, 9 de Abril de 1968
Deixo cair a tarde
Nos olhos fatigados.
O dia foi de luz intensa e demorada,
Nevada nas alturas,
Guardei o que podia.
Agora quero a noite
E a brancura das horas
Sem lembrança.
Trevas de claridade
Inconsciente.
Longe daqui, e sempre aqui
Presente,
Quero sonhar apenas o que vi.
Quero ver o que vi mais transparente.
Miguel Torga, In Diário X