Chaves D´Aurora
- HOMEM DE AÇO.
Havia algo de muito angustiante, a que a brasilita não alcançava perceber. Porque jamais conseguia ver Hernando, nem mesmo raramente, se moravam tão perto um do outro? A verdade é que o rapaz era irregular em muitas coisas, inclusive quanto às horas de sair ou de chegar a casa. Quando já fazia quase dois meses que o guarani Peri amara sua branca Ceci, no écran do Cine Teatro Flaviense, o cigano viu Aurora debruçada à janela e, saindo à rua, desdobrou um tosco e mal desenhado cartaz em papel de embrulho, onde se lia:
“O HOMEM DE AÇO, HOJE,
ÁS CINCO DA TARDE, NO
TEATRO SALÃO MARIA!”
Logo porém, ao sentir gente a passar, dobrou o anúncio rapidinho e se recolheu a casa.
Aurora tentou, avidamente, descobrir quem era ou o que era esse tal “Homem de Aço”. Debalde, não fosse a ideia de ler no “A Região Flaviense” sobre o “enterramento do Homem de Aço num caixão, ontem, sábado de Aleluia, de onde só será desenterrado no próximo domingo, dia 8, à mesma hora, e que pode ser visto todos os dias, no local, pela módica quantia de 50 centavos”.
O problema é que, se a possibilidade em sair com as irmãs já era difícil, impossível de facto era ir sozinha.
Uma vez mais, todavia, outro acaso veio favorecê-la. Morreu dona Isménia Lobo, uma parenta distante dos Bernardes, reconhecida como pintora e poeta – Diletante! – como ela própria dizia e que morava com a sua inseparável amiga Edite, de casa e pucarinho, desde que eram mocinhas e estudavam no Convento de Santa Clara, em Coimbra.
Isménia e sua dileta companheira, ambas muito afáveis, cultas e viajadas, estavam entre as raras damas de Chaves a manter de facto, com Adelaide, um vínculo de amizade. Frequentavam-se, mutuamente, a saborearem cup cakes de laranja e chocolate, em requintados chás à inglesa, enquanto se entregavam a refinadas conversações sobre a Vida, o Mundo, o Tempo, os Costumes.
As amáveis senhoras formavam um dos pares mais assíduos de pessoas devotas, na Santa Maria Maior. A fraterna devoção de ambas, entre si, também era tão admirada, que a poucos escapava o facto de, em todos esses anos, dormirem juntas no mesmo quarto e sob o mesmo dossel do século XVIII, com seus pilares em volutas, o seu ruço cortinado escarlate e as borlas douradas ao redor.
Alguns meses antes do passamento de Isménia, que deixou Edite em evidente prostração, lera-se aos jornais que, em uma das aldeias do Concelho, dois rapazes, surpreendidos quando dormiam juntos e despidos, foram surrados pelos próprios familiares, um deles até à morte. O outro, mesmo ferido, fugiu para Lisboa.
O que se mostra é virtude, o que se esconde é pecado.
Aurora disse logo que não poderia comparecer a esse funeral, por estar nos seus “dias de história”. Sorriu a si mesma, ao notar que logo mais iria encaminhar-se para outro enterro, o do Homem de Aço, embora este não fosse mais do que uma bizarra encenação teatral. O pobre homem recebera essa alcunha, por ganhar a vida a permitir que lhe espancassem a musculatura torácica e dorsal, de modo a comprovar, assim, a rijeza muscular. Agora, resolvera se deixar enterrar vivo, durante sete dias, para ganhar mais alguns tostões.
Tão logo se viu sozinha, vestiu-se toda de preto, como as viúvas da região. Apôs-se o enorme xaile que ia até ao chão e um típico chapéu, usado na época por muitas aldeãs, que tomara emprestado à Maria, ainda que à revelia da própria criada que, tal como a Zefa, não alcançou vê-la sair. Tomou o caminho do Caneiro, atravessou o rio por entre as Poldras e, enfim, chegou à rua onde ficava o Salão Maria. Lá dentro, mal teve tempo de ver o tão bem vivo cadáver. Hernando já lá estava, à sua espera.
O rapaz levou-a até um sítio deserto, junto às muralhas da torre, onde ela vivenciou momentos de total enlevo, embora cândidos, contidos, castos. Chegou mesmo a se alcandorar e voar com o amado sobre aldeias fronteiriças, como Tourém ou Segirei e de lá retornar, extasiada. Não se desligava, todavia, de sua vigilância, sempre a impedir que Hernando ultrapassasse as marcas e as raias do bom Concelho. Até que Aurora se deu conta do tempo e perguntou as horas. Ele sorriu, maroto – Não é tarde, nem cedo, brasilita, tua parenta ainda há de estar a descer à campa. – mas logo a rapariga disse que tinha de se pisgar e ele, ríspido – Se já queres ter ao borralho, vem, levo-te – mas ela – Reloucaste, meu rico? E se nos veem juntos?
Ele falou então com uma voz séria e fria, que nem parecia a de poucos minutos atrás – Está bem, rapariga, não convém jamais que os nossos pais, mormente os meus, saibam de nós – e, após lhe dar um beijo apressado, quase formal, sumiu para os lados de Santo Amaro.
Bairro de Santo Amaro. Capela do Horto, ao fundo.
Chaves antiga (PT). Postal Foto Alves.
Ao voltar sozinha, pelo mesmo itinerário da ida, as palavras que escaparam do rapaz estavam, agora, a lhe revolver os miolos. Porque “jamais”, se a fé e a esperança nos fazem crer que não há nada como um dia atrás do outro? E porque “mormente meus pais”, se estes já pareciam distanciar-se, cada vez mais, de suas tradições familiares?
Na segunda-feira, porém, Aurora ficou a morrer de saudade daqueles breves momentos, quando leu no jornal que o Homem de Aço não pudera prosseguir em seu desafio. Após quarenta e oito horas de jejum, o próprio homem teve que suspendê-lo para que, conforme dizia a notícia, “ a morte a fingir não se tornasse, mesmo, verdadeira”. Condoídos da penúria do pobre homem, alguns sargentos da Infantaria 19 fizeram uma subscrição para completar o dinheiro que ele deveria ganhar, se prosseguisse nessa tão perigosa exibição.