Chaves D´Aurora
- ANUNCIAÇÃO (3).
Mais uma vez o jantar foi de tal silêncio, que até João Reis, em geral não muito dado a conversar durante as refeições, estranhou que ninguém falasse nada, ao menos para comentar sobre o caldo verde da Mamã, sempre melhor que o de sempre.
À desditosa menina Aurora, indisposta no leito, Zefa levaria uma canja. Os rapazes, assim como a mais nova, ainda de nada sabiam. Aldenora remoía seus angustiados pensamentos. Alice, esta já optara em comer junto com as criadas, cheia de vergonha diante do futuro sogro. Somente Aurélia esboçava dizer alguma coisa, vez por outra e se calava, diante do olhar severo da mãe. A essa altura, Flor percebera que Nonô já se antecipara em passar à irmã a lastimável notícia.
Florinda esperou que o marido fosse para a salinha íntima e, como de hábito, ficasse a tomar o seu Porto, fumasse um havano e folheasse os jornais. Dirigiu-se à porta oval, encimada por vitrais coloridos e, por uns segundos, hesitou. Sentiu que havia alguém atrás de si, virou-se. Era Aldenora, que lhe tomou das mãos, beijou-as e fez, com a cabeça, um gesto de – Vá! – e foi esse, talvez, o mais crucial momento na vida de Florinda de Morais Dias Bernardes. Adentrou o aconchegante ambiente, fechou a porta atrás de si e parou, com as mãos unidas como a rezar, imóvel qual a Santa Maria em seu nicho, à Igreja Matriz.
Reis mirou-a por algum tempo e já lá se pôs a plenos cuidados com a esposa. – Que tens, Menina Flor, estás doente? Mesmo ao jantar, reparei que não estavas boa. Oh, minha Florzinha, andaste a chorar? – e ela se lhe atirou aos braços – A chorar por nossa filhinha, meu querido Reis, nossa filha Aurora, nossa tão encantadora e amada Aurita… – e o Papá, já nervoso – Que foi, minha Flor? Fala, diz, que foi que aconteceu com a nossa menina? Ela está enferma, eu sei, disseste que por isso não vinha à mesa, mas o que se passa com ela, de facto? O que foi que disse o doutor Fagundes, alguma doença muito grave?
Ela afastou-se do marido, foi até à janela envidraçada e se pôs a olhar para a estrada que vai dar à Espanha. Em verdade, não se pusera a olhar para nada.
– Está prenha.
Papá levantou-se quase a pular, o sangue a lhe subir às têmporas – Mas como?! Como é que pode ter acontecido uma tontice dessas?! Diria até que estás a fazer troça comigo, se isso fosse motivo de se brincar, ou fossem tais coisas do teu feitio! Grávida, a nossa menina?! – e logo adveio a odiosa pergunta – Mas de quem?! – Ela não me diz quem foi, apenas se põe o tempo todo a chorar.
Reis ficou por vários minutos a remoer as ideias e a misturar vários sentimentos, em seu redemoinho cerebral. – Mas as nossas filhas, elas nunca estão a sair sozinhas de casa, tu sempre cuidaste bem delas… Será que dormiste demais o sono dos imprudentes e deixaste a nossa menina ir ao Beco do Desvio, aquele que sempre acaba na Rua da Amargura? – lá isso feriu Mamã e ele – Não, não chores, bem sei que não tens culpa de nada… Mas quem será esse filho de uma marafona, que atirou aos porcos uma pérola tão preciosa como a nossa Aurita? Algum desses colegas do Afonso ou do Alfredinho, que nos vêm a casa e, ao invés de apenas desfrutarem de teus bolinhos e biscoitos...? Ou será que o Manuel não passa de um grande sonso e traiu a nossa...? Oh, não, minha Flor, que estou a dizer? Nem o de Fiães!
(continua)