Chaves D´Aurora
- CHAVES D’ ALMA.
Era sábado e um facto inusitado aconteceu com Aurora. Ela ergueu-se da cama e se pôs a caminhar, deixando atónitos a todos por quem passava e não conseguiam detê-la, enquanto permaneciam imóveis, os braços inertes, olhos esbugalhados, faces sarapantadas. Abrigada em um capote bem grosso, de lã e gola de raposa, que lhe ia até aos pés, com a cabeça e o pescoço envolvidos em um enorme xaile, sob um chapéu revestido de veludo, desceu a escada externa, atravessou o pomar, galgou a estrada e atravessou por entre as veredas, até chegar à Azenha dos Agapito.
Não se podia definir, àquele outono, se era dia ou noite, pois tudo estava brumoso e frio. Tudo era névoa. por diante e em volta de si. À beira de uma das sendas da azenha, parou diante de uma cruz de pedra que encimava uma campa solitária. Era seu o nome de quem ali jazia, deixando-a consternada, mas os versos escritos deram enlevo a sua alma:
“Aqui dorme o sono da saudade. Nos céus deve ter aparecido uma nova estrela de muito brilho e, tal qual a estrela Dalva, que dela se tenha melhor visão na aurora do dia! Com todo o teu brilho, foste a aurora de todos que te amaram”.
Conformada de si e de sua própria passagem para o Quem Sabe, caminhou pelas orlas do Tâmega, por entre amieiros e chorões, até um ponto mais distante da vila, um sítio onde o rio era um pouco mais profundo. Uma vez que, àquela época, não houvesse outras pontes além das Poldras e da via romana, pequenas embarcações costumavam transportar, de uma margem a outra, pessoas com cestas de roupas, animais domésticos, géneros alimentícios e o mais, de seus trazidos e levados.
Ao chegar ao pequeno ancoradouro, havia apenas um barco. Aurora, por única passageira, sentou-se à proa e o bote começou a deslizar sobre as águas. Como o grego Caronte, o mitológico ser da travessia no Hades, um barqueiro surgiu de repente das brumas e, com a face incógnita pelas sombras, começou a entoar uma cantoria popular de Segirei, aldeia então meio esquecida no extremo nordeste do Concelho, já na fronteira com a Galiza:
“Atirei com uma laranja
por cima de Chaves fora.
A laranja vai dizendo:
fica, Chaves, vou-me embora”.
Aurora reconheceu aquela voz e olhou para o barqueiro. Protegido do frio por um sobretudo escuro, chapéu de feltro e uma luva cor de morcela, este remava em pé como um gondoleiro veneziano. Parecia agora bem mais alto, ainda mais belo e até bem mais forte do que sempre fora o seu Hernando. O amado estava ali, diante dela, a olhar para si, sorridente e a cantar:
“Dá-me um beijo, ó menina
dá-me um beijo, ó meu amor
dar beijos não é pecado
desprezá-los é que é dor”.
Ergueu-se de chofre, embasbacada. A voz de Hernando continuou:
“Pensastes por me ver rir
que já me tinhas na mão
eu não sou tão labaceiro
que colha a fruta no chão”.
– Ai meu bom Deus! Será que de facto morri? Há de ser mesmo tu, Hernando, ou é o Demo que está a me deixar com água na mioleira?! – Ele nada respondeu e prosseguiu a cantar, enquanto partes de seu corpo iam-se desintegrando, até sua face, por fim, sumir na densa neblina.
- CHAVES DO MUNDO.
Logo estava ela, de novo, em seu leito de extrema-ungida, sob o odor dos círios, junto ao oratório de louça e dos unguentos,...
(continua na próxima terça-feira)