Chaves D´Aurora
- EXPIAÇÃO.
Reis se pôs a pensar por alguns segundos, mas logo se dirigiu ao pequeno cofre inglês e dele sacou um apreciável maço de notas – Aí está, não sei se é pouco para expressar a nossa gratidão por todos esses anos, mas creio que tens aí o bastante para tocar de novo a tua carroça em outros caminhos. E se quiseres morar com outra família, onde possas servir, cá está uma carta de recomendação. Nela estou a falar que és uma rapariga de bons costumes e uma excelente serviçal.
A criada estava a um só tempo hirta e trémula, enquanto Reis lhe estendia os envelopes – Vamos, toma! Quero dizer também que, apesar do que fizeste, não te quero mal. Arranja-te para sair agora mesmo (e acrescentou a si próprio – antes que Florinda volte da Santa Casa, onde levou Alice a se consultar e me venha com suas súplicas de bondade). Que Deus te acompanhe!
Até que um fio de voz, afinal, escapou da garganta de Zefa – Ah, senhor João Reis, o senhor está a ser tão injus… Não é nada disso que eu quero! – disse, a olhar para o dinheiro – O que eu gostava mesmo era de ficar nesta casa e de estar sempre a serviço de todos vós, pois juro que eu… juro por Deus... – mas não conseguiu completar.
Saiu correndo a chorar até à cozinha e só depois pediu à de Tourém que lhe fosse buscar a carta e o manhuço de notas. Amparou-se ao ombro amigo de Maria, tomou alguns goles d’água com açúcar, desceu até ao porão e reuniu, em uma velha maleta, os seus parcos possuídos. Dirigiu-se depois ao quarto de Aurora – Ai-jesus, que ao menos de ver a minha menina e a Fatinha, antes de partir, isso o patrão não tem poderes de m’o impedir! – e a rapariga, sabedora de tudo por Maria, já estava à porta do quarto, a esperar pela ama. Abraçaram-se, com a Zefa em lágrimas torrenciais – Não fui eu, minha boa menina! Não fui eu quem abriu a boca do Dianho, minha Aurita, bem sabes que não fui eu! Mas por qualquer outra coisita mais, perdoa a esta pobre Zefa, que sempre só quis o teu bem!
Aurora também estava a se banhar em lágrimas – Não há nada a te perdoar, minha Zefinha, porque sei que sempre me fizeste somente o bem. Apenas saudade, muita saudade é que me vais deixar – e enquanto punha a bebé ao colo, a barrosã falava de quanto era difícil se conformar com o sucedido. – Mas o que mais me dói, menina Aurora, é estar hoje assim, tão escorraçada por vosso pai a deixar esta casa, a essa altura, quando mal acabaste de parir a tua menina! Tão belazinha, a nossa miúda! Pena que seja mulherzita como nós. Mais uma a sofrer neste mundo de Deus – e Zefa concluiu, a expor os seus mais sofridos ressentimentos – e do Diabo! – suspirou – Pois as mulheres, ao menos em nossas paragens, sofrem mais do que os varões.
Após muitos abraços e prantos, Zefa partiu rumo ao Tabolado, onde ia pegar uma carroça que a levasse até à casa de uma parenta, na aldeia de Nantes.
Tão logo chegou a casa e Maria lhe deu as tristes novas, Florinda teve ímpetos de chamar o Manuel, para que o cocheiro a levasse até ao escritório da Rua Santo António. Conteve-se, porém, ciente da máxima de São Paulo – “Que as mulheres sejam submissas aos seus maridos” – a cujos princípios conjugais estabelecidos não poderia transgredir, devendo contentar-se apenas em chorar pelos cantos da casa, com seu lencinho de cambraia ao canto da boca ou a mascar seus charutos.
Ora pois que, a fim de mitigar um pouco as suas angústias, desde então se entregara a esse hábito secreto, que só alguns anos depois, em sua viuvez, passaria a manifestar sem pejo diante das filhas e dos mais íntimos. A Flor, apreciava mordiscar e mascar os puros de Cuba ou do Brasil, cujos primeiros instrumentos de pecado foram alguns havanos, surripiados ao esposo. Desse pequeno furto entre os pares, João Reis não dera o menor tento, cada vez mais tristonho e macambúzio, desligado de quaisquer ninharias da vida, que não fossem aquelas que são essenciais a um patriarca.
- GARRAS DA LEI.
Certa manhã, anos após a Zefa ser demitida, um polícia veio procurá-la em Bragança, onde...
(continua na próxima terça-feira)