Chaves D´Aurora
romance
- PÁSSAROS.
No último dia dos Bernardes ao Raio X, ao abrir uma janela, Aurélia deixou seus ouvidos inebriarem-se do canto dos passarinhos. Ah, os pássaros de Chaves! Eles estão por toda parte e alguns, como cantam! Tordos, toutinegras, estorninhos, rouxinóis, rolas-turcas, melros, chapins, bicos-de-lacre, piscos, ferreirinhas, cotovias, chamarizes, pintassilgos, vendilhões... e muitos outros que, àquela altura, abundavam na veiga, nos jardins, nos pomares e nas margens arborizadas do Tâmega.
Talvez, ao quintal da casa onde fossem morar no Brasil, houvesse muitas espécies de aves canoras, pois, afinal, apesar de ser uma urbe crescida, Belém era parte vital dessa Amazónia, cercada de rios e de extensas matas. Apesar disso, porém, era possível que Lilinha, quando chegasse ao Brasil, ao se referir à terrinha distante, repetisse, a uma inversão geográfica, os versos do poeta maranhense Gonçalves Dias, em sua “Canção do Exílio”: “As aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá”.
- PIANO.
A casa estava agora apenas com os móveis comprados pelo senhor Sarmento e que lá mesmo, portanto, haveriam de ficar. Dentre estes, o piano sobressaía à sala de jantar onde todos da família, agora, viviam a se reunir, juntos mas isolados, em seus mudos solilóquios. Fechado, suas teclas estavam agora a tocar, por si só e para si mesmo, uma sinfonia de silêncios, um réquiem de disfonia sepulcral.
Após contemplá-lo por alguns minutos, Aurora resolveu abri-lo e deixar as marcas doridas de seus dedos, em cada uma das teclas. Selecionou algumas partituras e se pôs a tocar, como há muito tempo não fazia, Bach, Mozart, Lizt, Beethoven, Chopin… Aldenora ainda fez menção de impedi-la, achando aquilo tudo um disparate, mas o próprio pai a demoveu de tal censura.
Estavam todos ali emocionados, em volta do instrumento, apenas o pai à parte, mas como um ouvinte bem atento. A essa altura, ninguém externava mais seu pranto, nem mesmo Florinda. Talvez chorassem por dentro, como os jovens sentinelas do Palácio de Buckingham ou os da Guarda Suíça, ao Vaticano, obrigados a não se mexerem, reagirem ou expressarem qualquer emoção em suas faces petrificadas, ainda que lhes venha ao pensamento, de pronto, a lembrança da mãe que faleceu, ou a saudade de um amor que já se foi.
Quando Aurora tocou uma velha canção portuguesa, a que todos ali conheciam, o canto, no entanto, fez-se um pranto geral, ainda que não aos borbotões. Até mesmo nos olhos do patriarca podia-se ver alguma humidade, sinal de lágrimas contidas a lhe escorrerem para dentro da alma. Era um choro coletivo, mas calmo, suave, tão silencioso quanto a melodia de tons emudecidos que o piano, ao ser novamente abandonado, recomeçou a tocar para si mesmo.
O que Aurora perguntava-se agora é se, ao futuro – qui lo sa? – aqueles belos sons ainda continuariam a sair de suas mãos, em algum outro piano d’além mar.
- TRAGÉDIA FAMILIAR.
Como na via-sacra da quaresma, Florinda percorreu, um por um, os cómodos da casa,...
(continua na próxima terça-feira)