Chaves D'Aurora
- APRENDIZA DE MÁGICO.
Às noites em que chegava do comércio, ao dar sua bênção à mais velha de suas meninas, Papá sempre lhe perguntava – O que tens a dizer, minha boa Aurora, com essa “cabeça no vento e os pés ao relento”? Parece que “foste à missa e nem viste os santos”. – e Aurita sorria, a beijar as mãos daquele pai, no geral tão calado e severo, mas que tanto a mimava, com sua manifesta predileção, quanto ela o adorava, malgrado seus ralhos e relhos vocais – Porque não te vais dedicar, a esta altura, às lições de piano ou aos bordados?
Apontava para o velho relógio da sala de jantar e dizia, à moda de Trás-os-Montes – Deixas passar os minutos e te esqueces “quem tempo tem e tempo fica esperando, esse tempo que se perde é o Diabo que vai ganhando” – ao que Mamã acrescentava, a bater de leve na testa da menina – Ah, minha linda Aurita! Bem sabes, ou bem devias saber, o quanto gosta o senhor Satanás de se chegar às raparigas e lhes botar macaquinhos no sótão.
A uma tarde de domingo, Papá ouviu risos, palmas e gritos alegres que vinham da sala de estar. Lá encontrou o Alfredinho e as meninas Aurélia e Arminda, aos pés da saia de Mamã, a se deliciarem com as singelas mágicas que Aurora, tendo à cabeça uma velha cartola do pai, exibia com a segurança de um profissional.
Revelava-se uma boa aprendiza do ofício desses artistas tradicionais, que animavam os shows nos velhos circos itinerantes, por cujos furos da lona remendada viam-se as estrelas. Circos que, entre uma festa e outra de santos, soíam passar pelas aldeias e vilas trasmontanas, à cata de alguns réis, que mal davam para a mera sobrevivência da trupe.
À primeira vista, João Reis também aplaudiu, com muito gosto, as exibições de Aurora. Logo, porém, a um segundo olhar e à imediata conclusão, uma nuvem cinzenta lhe perpassou pelo céu da boca e dela saiu a pergunta que não podia calar – Com quem aprendeste essas fantochadas, Aurita, que “só quem tem unhas é que toca viola”? – e, desprevenida, sem prévios ensaios para aquela estreia desastrosa, a jovem emudeceu, sem saber o que dizer a esse repórter de jornal que a entrevistava com ares de inquisidor e para os quais, de per si, já muito contribuía a habitual sisudez.
Reis era um típico dom-casmurro, como a clássica personagem do romance de Machado de Assis. Tinha, porém, ainda que avaro de sorrisos, alguns momentos expansivos, quando se punha a gracejar sobre raparigas de vida airada, gajos com orelhas de asno e outras figuras comentáveis da cidade. Em alguns sábados, à saída de seu comércio de importação e exportação à Rua Santo António, ia ter com os amigos à Esplanada do Quincas. Ali, à beira do Tâmega, ficavam a beber suas girafas de cerveja entre os pregos, presuntos de São Lourenço e outras tapas que, a eles todos, tanto sabiam bem. A casa, aonde chegava com o nariz avermelhado, trazia sempre algumas tartes para os mais velhos, um pão com passas e frutas para Florinda e os rebuçados de fazer a festa aos miúdos, dos quais ele, em raros ensejos, amarfanhava os cabelos com um gesto de carinho.
Era a primogénita, porém, que fazia brilharem os seus mais amorosos olhos de pai. Assim eram, pelo menos, a usar e abusar da candura da mãe, os queixumes de Aldenora, a terceira dos filhos, que estava sempre a dizer – O Papá nos guarda a todos no peito, mas depois da Mamã, é pela Aurora que mais lhe bate o coração.
(continua)