Chaves D'Aurora
- MÁGICAS DESFEITAS.
Ao pé da lareira, no entanto, Reis havia de cumprir o seu papel de provedor e chefe do clã, a impor as ordens que ele julgava necessárias para o bem-estar da família, da tradição e da propriedade. Pediu a Aurita que passasse à sala de jantar. Mandou-a sentar-se à cabeceira da mesa de nogueira, onde a família reunia-se para o repasto, agora vazia, enorme. Postou-se à outra extremidade, onde sempre se havia bem em seu trono de patriarca e acendeu um havano especial, dentre os que lhe trouxera de Cuba o seu amigo Gonzaga Sarmento.
Fez uns séculos e séculos de silêncio e, enfim, dirigiu à filha as palavras que, segundo ele, precisavam ser ditas. Esta, com os olhos baixos a se fixarem nos bordados da rica toalha da Madeira, estava a se fazer e desfazer em mil ansiedades, sobre o que ele, afinal, ia dizer – Se bem conheço, menina Aurora, há de morar pela Estrada do Raio X apenas um gajo que conhece bem dessas artes, pois que andou uns tempos a malandrar com os circos que vêm e vão para a Espanha. E muito me entristece, ao teu pai, ficares assim... – Calou-se em longa pausa e ela, depois de algum tempo, sem erguer os olhos, balbuciou – Assim como, meu pai? – e o chefe do clã prosseguiu, a um tom mais irritado – Ora, pois, não vês? Ficares por aí assim, de namorico, às ocultas, com esse tipo que te não merece.
Dirigiu-se com Aurora até ao quarto do casal, diante do oratório de jacarandá, belíssima peça de artesanato de quase um metro de altura, oriundo de alguma antiga fazenda das Minas Gerais e que ele, quando ainda estava ao norte do Brasil, comprara de um vendedor ambulante. Pegou, no interior do oratório, um belo crucifixo com a imagem em pedra-sabão e as hastes de madeira esculpidas em filigrana. Nele se venerava o Filho de Deus, entre uma Virgem de louça e um Santo António de madeira. Mostrou à filha a face de Cristo, moribundo e sofredor, que revelava todo o esmero de algum discípulo do célebre Aleijadinho, no ato de esculpir. Fez a jovem rapariga ajoelhar-se e jurar, pelo Pai, pelo Filho e pelo Santo Espírito, que nunca mais haveria de se encontrar com o senhor Hernando.
Aurora engoliu em seco o seu pranto e desencanto – Assim seja. Amém! – mas ah se o Papá escutasse o verdadeiro som, que lhe vinha do coração: Assim na terra como nos céus, o céu de Chaves ou de qualquer outro rincão onde eu, junto com esse amor que me palpita além do peito e além de mim, e o senhor quer fenecido, antes mesmo de vê-lo florir, aos poucos e a cada dia, estarei a fenecer.
Aproveitando-se de que o Papá já fora dormir, Aurita conseguiu, a muito custo, que a Zefa de Pitões, após relutar bastante, alcançasse o cigano naquela noite mesma e que o rapaz lhe viesse ter, pelo lado de fora da quinta, justo ao ponto no qual uma figueira se alinhava bem ao muro lateral, próximo à escada que descia para os fundos da casa. A se valer dos ombros da pobre ama, a menina subiu à árvore e se debruçou sobre o cercado de pedra. Em baixo, já lá estava o seu Romeu.
Sem cantos de cotovia nem rouxinol, após derramar sobre o rapaz todas as lágrimas que ainda pudesse verter, Julieta falou-lhe dos últimos sucessos (ou pior, dos insucessos). Que o instante, aquele, era o último de sua vida, a dela, da qual já não sabia mais o que fazer, nem a que rumos iria dar, mas que a sua alma era dele para sempre e os seus lábios agora só estavam ali para dizer, à moda de um cuco de Poe, desesperado por jamais conseguir ficar fora do relógio – Nunca mais! Nunca mais! Nunca mais!