Crónicas de assim dizer
Era uma vez dois ouriços
A fêmea parecia ter uma delecção no cromossoma que codificava a carapaça, uma vez que não tinha, a bem dizer, espinho nenhum. Quando conheceu o ouriço, aparentemente normal, achou um exagero aquela quantidade de espinhos, mais de seis mil, que ele tinha espetados no dorso, dirigidos contra tudo e todos e aos poucos, com muito cuidado, mas nem sempre devagarinho, foi amolecendo um aqui, outro ali a ver se aquilo ficava um bocadinho mais suave, a ponto de ela se poder encostar sem se magoar e sem o ouriço achar que ela estava, sem respeito nenhum, a invadir o território dele.
Um dia ainda experimentou, na brincadeira, dizer-lhe: tu pareces um exército, mas não tinha resultado muito bem, porque embora sem ele o ter dito, a ouriça leu-lhe os pensamentos, que diziam: “e tu és careca!” (O ouriço pensava mais do que dizia e a ouriça dizia mais do que pensava!)
Aliás, esta característica da ouriça adivinhar, leia-se ler, pensamentos, que aparentemente seria uma vantagem, em circunstâncias normais e para um ouriço comum, tinha-se tornado numa fonte de problemas. O ouriço, este, que era especial, não gostava. E os motivos nem sempre eram óbvios, o que fazia a ouriça entrar em transe, porque recorria constantemente ao baú do raciocínio lógico, pouco operante nestes casos!
Tinha um discurso eloquente cujo primeiro ouvinte era o próprio e não achava graça nenhuma a que a ouriça o interrompesse, dizendo-lhe o que já sabia ou julgava saber. Era aqui que o ouriço hibernava por tempo indeterminado. A temperatura corporal descia de 35 para 9 graus centígrados e o ritmo cardíaco passava de 190 para 20 batimentos por minuto. Gélido!
Estas e outras coisas originaram uma alteração genética muito rara, mas que pode acontecer em condições desfavoráveis ou por pressão do meio ambiente: foi inactivada uma proteína repressora do gene que codificava os espinhos e eis que, lenta e gradualmente, começaram a aparecer na ouriça, primeiro uma pelugem inofensiva e depois (aqui e ali) uns espinhos de queratina, de cuja manifestação fenotípica o ouriço também não gostava. Lidava bem com a outra, genotípica, igual à dele, mas a implicação dela no comportamento da ouriça já não era pacífico, aproximando-se muito mais de um atlântico, tal era a temperatura das águas! Não estava a funcionar!
Começou então um conflito entre os espinhos rijos, há muito tempo nascidos, e os agora recém-criados, que se engalfinhavam por dá cá aquela palha, que é como quem diz por tudo e por nada, com atribuições de culpa pouco claras e pouco sérias, com consequências desagradáveis e nada confortáveis.
Então a ouriça, que tinha vivido tantos anos careca e bem, na tentativa de resolver o problema, foi à depilação. Vencidas todas as contrariedades de um bicho destes ter sido aceite num gabinete de estética para humanos, a experiência não resultou: os pêlos, digo espinhos, voltaram a crescer. E embora o problema da reincidência fosse um falso problema, porque a ouriça podia lá voltar uma e outra vez, a mesma achou que aquilo dava uma trabalheira tão grande, dos diabos mesmo, que a ouriça optou por deixar estar.
Há problemas, mesmo grandes, que se resolvem assim: deixando estar. E o engraçado foi o que aconteceu depois. Os espinhos do ouriço deixaram de ser desconfortáveis para a ouriça. Não se percebeu se amoleceram, se desapareceram ou o que foi que lhes deu! Na realidade, deixaram de estar, pura e simplesmente deixaram de estar, pelo simples facto de que a ouriça deixou de os ver! Acontece o mesmo com as flechas disparadas que não atingem o alvo porque ele deixou de lá estar! Ninguém se magoa, acaba tudo em bem, à filme americano, mas com actores franceses. Dá que pensar.
Cristina Pizarro
PS: Correctamente escrevendo, o termo “ouriça” não existe. O termo correcto é ouriço fêmea, mas achei piada ao “ouriça”! É fofinho, e como é ficção… deixo estar!