Crónicas de assim dizer
A travessia
Foi longa a travessia! Não grande, longa!
Ainda estava em terra quando me apercebi de que o mar estava encrespado e que não ia ser fácil. Podia esperar algumas horas ou dias ou meses, até que fosse mais seguro meter o barco ao mar, mas esperar não sou eu.
Fui, mesmo assim. Sabia, tanto quanto é possível saber sem ter feito, que tinha grandes hipóteses de sobreviver, por aquela convicção, na maioria das vezes estúpida ou inocente, de que havemos sempre de sobreviver a tudo. Pensava: que monstros marinhos me podem aparecer? E respondia logo depois, tenho este péssimo defeito de fazer perguntas com as respostas dentro, seja quem for ou o que for que me surpreenda por entre as ondas, ou eu ou o barco ou ambos, vamos saber contornar.
Ao princípio foi o vento a soprar desnorteado, vindo não se percebeu ao certo de onde, que me rompeu as velas e eu no mar alto já sem terra à vista a costurá-las! Claro que no estojo dos primeiros socorros havia agulha, linha e dedal.
Depois foi o motor a falhar, uma válvula que descomprimiu, se soltou ou encravou, não percebo nada de motores, e que tive de desmontar e substituir.
Depois o óleo que se consumiu em excesso pela força adicional que o motor teve de fazer contra a corrente.
Depois os botes salva vidas a soltarem-se do convés sempre que o barco galgava uma onda não prevista e a tudo isso eu resisti e sobrevivi com aparente serenidade. Digo aparente porque houve alturas em que senti taquicardia e receei que o coração me saísse pela boca. No kit de socorro também havia pastilhas para isto.
Depois os alimentos acabaram porque a viagem estava a durar mais do que o previsto e passei verdadeira fome, mas comecei com alguma antecedência a racionar os mantimentos como se uma voz do além me advertisse para não abusar da sorte.
A água doce também começou a escassear, mas um amigo tinha-me ensinado um processo de dessalinizar a água que na altura me pareceu complicadíssimo, mas que a necessidade tinha transformado em fazível!
Quando me convenci de que já não podia acontecer pior, começou a entrar água no casco. De facto, durante a noite tinha ouvido uns ruídos estranhos como se o fundo do barco estivesse a roçar em alguma coisa, mas naquele estado de embriaguez que é aquele em que dormimos, achei que tinha sido um sonho.
Mas, se bem que tudo isto me tenha assustado a seu tempo, eu sabia que haveria sempre uma solução e que ela navegava comigo, por assim dizer, dentro do barco.
O pior foi quando começaram a entrar ratos! Aí eu atirei-me à água e submergi porque tenho verdadeiro pavor dessas criaturas e teria mesmo naufragado, mas os milagres acontecem: quando estava já sem ar nenhum, e tinha-o poupado bastante por causa daquele curso de mergulho que tinha feito em Ko Tao, na Tailândia, estiquei os pés e, macacos me mordam se não foi verdade, encontrei terra firma! E murmurei: Há coisas do… podia-me ter saído “arco-da-velha”, mas saiu-me um palavrão que nunca antes me tinha saído!
Cristina Pizarro