Crónicas de assim dizer
Funerais em vida
Andamos aqui a exumar cadáveres, a prolongar decrepitudes para evitar dizer não de uma vez por todas, e são só três letras, mas que nos custa muito a juntar! Não estamos preparados para funerais em vida, despedidas sem morto, últimas vezes por opção!
É-nos muito mais fácil gerir consequências do que assumir responsabilidades! Dizer e interiorizar "fui eu que quis", que supostamente nos podia fazer sentir poder, o que nos causa é aflição! Já quando dizemos aconteceu-me isto, ele fez, ele agiu primeiro e eu só reagi depois; já aceitamos melhor, a “coitadice”, nem sei se isto existe, de nos enganarmos e verbalizarmos: não estava na nossa mão, apazigua-nos! Mas a verdade é que estava e está! E servimo-nos, ou a nossa mente serve-se, desses jogos, traçados dissimulados, a ver se não damos conta, mas damos! Mesmo já no interior do labirinto, o certo é que sabíamos logo de início que encontraríamos sempre uma saída. Podia ser a pouco ou a muito custo, mas tínhamos a certeza de que havia nele, inexoravelmente, uma saída. Se no fim não encontrássemos nenhuma, havia sempre a do início, e é com isto presente que vamos sempre em frente, quando a meio do percurso já tínhamos percebido que aquilo não iria ter um fim heroico!
Tanto o sim como o não, estão na nossa mão, mas não é fácil, nunca foi e mesmo assim conseguimos chegar até aqui, claro que à custa de muita coisa, mas sobretudo à nossa custa. Fomos racionais quando foi preciso, emotivos quando pudemos e o permitimos e é essa a "grande coisa", mais que o poder, a capacidade de decisão! É nossa sim, mas nem todos somos capazes e os que somos não conseguimos entender os que o não são e isto não é uma falha nossa, não temos necessidade nenhuma de compreender a razão dos outros. A implicação disso em nós não pode ser nenhuma! Estamos a falar de caminhos diferentes, que poderão até ter tido parte de um percurso em comum, não mais do que isso! Mas temos a mania de achar que sim! Que somos omnipotentes e que a falha dos outros é ainda nossa! Como se dentro deles houvesse um espaço a nós reservado, um lugar cativo, estacionamento privado para moradores! Mas não moramos lá, caramba!
Vestimos a roupa preta, pomos o véu na cara, rezamos uma Avé Maria ou um Pai Nosso e depois vimos para casa. Nem sequer temos motivo para chorar, porque ninguém morreu! Morreram coisas e mesmo assim estamos a blasfemar, porque estamos a personificar o tempo do verbo que, sem metáfora, seria acabaram coisas! Mesmo assim é um exagero, hipérbole literária, continuamos líricos a usar figuras de estilo a dar com um pau, por tudo e por nada! Porque nem as coisas sequer acabam, as coisas transformam-se. Simples, Lavoisier!
Custa, sim, por variadíssimos motivos, mas no meio deste circo que é a vida, o coelho branco sai do chapéu sem nunca lá ter entrado, uma espécie de magia em que o truque é: a aceitação. E a partir de aqui começa a ser tudo fácil.
Quando nos colocamos no nosso lugar, distantes de tudo o que só nos rodeia e que nada tem a ver connosco, ficamos com visão periférica, como se tivéssemos uma mira telescópica instalada na retina. Vemos quase tudo, o quanto basta.
O padre acabou de entrar, o caixão estava aberto, o morto vivo, mas calado. Estava com a consciência latente, mas aguardava que chegasse a sua vez, que o padre, o dono daquilo tudo, lhe indicaria qual o momento.
E foi aqui, quando o morto percebeu que lhe estavam a anunciar o tempo de antena que ele se ergueu e hirto desceu do caixão.
Quando olhou, olhos nos olhos, para a assembleia geral, começou a rir e nunca mais parou. Tinha, de facto, graça!
Cristina Pizarro