Crónicas Estrambólicas
crónica de um primeiro-ministro sobre o barroso - 5
Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 5
Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. Afinal, além das quatro últimas crónicas, o Fernando (o CEO do blogue) descobriu mais algumas, todas sobre Barroso, num total de 15. Esta descreve a viagem de Boticas às Alturas. Vê-se que o Granjo não conhecia a região e não planeou em detalhe a viagem, o que não tem nada de mal. Duas horas para fazer os 5 km de Boticas à Carreira da Lebre, a cavalo?! Atravessar o Beça num pontilhão? Enganou-se, a famosa ponte Pedrinha já lá estava (há quem diga que é romana ou medieval). É interessante a descrição de Carvalhelhos. Gosto do uso da palavra réco. Não imagino onde seriam as duas antigas estalagens de Almocreves, talvez ainda lá estejam a servir de habitação. A Empresa das águas já existia e até havia anúncios à água no jornal A Capital, no mesmo ano em que saíram as crónicas do Granjo, reparei nisso. É pena, hoje em dia, a via romana nas Alturas (uma das três que ligavam Chaves a Braga) não estar assinalada. Foi destruída? Não me admiraria.
Luís de Boticas
SUBINDO À SERRA DAS ALTURAS
As aguas maravilhosas de carvalhelhos
A lenda das léguas que a velha mediu
De Boticas à serra de Barroso ou das Alturas é meio dia de jornada. As leguas, em Barroso, foram contadas por uma velha que ia andando e comendo dôces. É o que reza a lenda e é o que facilmente se constata mettendo-se a gente a caminho e internando-se, entre as serras interminaveis e os curtos plainos, até às maiores altitudes.
Quando monto o garrano, sobre cujo albardão irei, escarranchado e de pernas bambas, em busca do ignoto, pergunto à estalajadeira:
— Quantas horas levará a chegar às Alturas?
Alminhas - Lavradas
— É já ali. Chegando às Quintas, vê-se logo Lavradas, e chegando à Cruz das Lavradas vê-se logo a serra.
O garrano, a cabeça baixa, as pernas escaneladas e curtas, trépa como um carneiro. O sol nasce. Uma ténue neblina encobre o fundo do valle. Uma briza um tanto áspera pica a epiderme e faz bamboar por cima das paredes os braços das vidreiras, aqui e ali amarelecidas do míldio.
Nas corgas prosperam a urze real e a torgueirinha, o sargaço, a esteva, a carqueja, a queiroga. A giesta vê-se raramente. Uma levada canta pala serra abaixo.
O sol está já acima do horisonte. Toda a veiga reverbera. Nas perneiras e milho as gottas de orvalho fulgem como diamantes; na face adusta do granito os pedaços de mica rebrilham como flechas; babas d'oiro entrelaçam-se nas ramagens. À beira do caminho, os castanheiros deixam pender, n'um gesto familiar, os ramos verdenegros, d'entre os quaes os ouriços espreitam aggressivamente.
A vinha acaba. Nas Quintas, apenas, algumas latadas cobrindo as ruas com as suas sombras propicias, abrigadas da nortada pelas frontarias e protegidas as cepas das geadas por resguardos de cortiça.
Dobra-se o alto e na frente estende-se a ribeira do Beça. As restolhas, batidas do sol nascente, têem lampejos de prata. Dois rapazitos, guardando a vezeira do gado, fazem desenhos no caminho.
— É muito longe daqui às Lavradas? Um dos pequenos levanta os olhitos azues e aponta com o dedo o limite do horisonte.
— Por traz d'aquelle alto...
E os seus olhitos, duma transparencia de tarde d'outono, teem essa doçura das creanças que estão a atingir a nubilidade.
A caminhada leva já duas horas. Atravessa-se o Beça sobre um pontilhão inverosimil —duas ou três lages compridas em cima de meia dúzia de poldras. Acima, entre os castanheiros, esponta Carvalhelhos. O sol arranca dos colmos reflexos fulvos. As casas são térreas, de pedras justapostas, toscamente aparelhadas ou mesmo sem apparelho, tendo apenas uma porta e um cancello supplementar, destinado a impedir a sabida dos récos, dos pintos e da filharada, quando a porta tem de dar passagem ao fumo da lareira. Verdadeiras habitações primitivas, que, de longe, o sol arruivando os colmos, se diriam cobertos de pelles de animais selvagens.
É nésta aldeola perdida, sobrevivencia dos tempos protohistoricos, que brotam riquissimos mananciaes d’aguas silicatadas, para exploração e aproveitamento das quaes se constituiu. parece, uma empreza, mas que jazem ainda, jazem sempre, no mais lamentável e criminoso abandono. Todos os annos afluem a Carvalhelhos os doentes, assignalando-se curas maravilhosas nas condições menos favoráveis, ou, para exprimir toda a verdade, em condições muito proximas da immundicie. As aguas distam da povoação coisa de dois kilómetros. Dois cobertos de colmo protegem-nas das chuvas. Os banhos são aquecidos n'uma cozinha de campanha e ha para todos os doentes, às vezes mais de 50, tres tinas, por junto, de madeira ou folha. Os banhistas mais pobres acommodam-se aos montões nos palheiros. Apesar de tudo, a afluencia é cada vez maior, porque os testemunhos das curas são cada vez mais irrecusaveis.
Carvalhelhos
Carvalhelhos foi, nos dias gloriosos da estrada velha das Alturas, quando os almocreves, com as suas récuas de machos, eram os donos do transito entre Braga e Chaves, uma paragem forçada. Dois casarões, antigas estalagens, com enormes estrebarias, attestam, esse passado de grandeza e de prosperidade.
O sol vae alto. Uma voz possante, do cimo d'um penedo, dominando os cerros, chama à eira; e, já no limite das Lavradas, ouve-se o cantar dos malhos. Para Villarinho da Mó, vê-se a serra golpeada das pesquizas de volframio. Uma rapariga dos seus dezaseis annos, os seios pequenos como os fructos da novidade, furando a camisa de linho, os olhos pretos luzindo como lascas de volfrâmio, sentada no sóco da Cruz das Lavradas, vae fiando a maçaroca de lã e vigiando a cabrada que retouça no montado.
— Pastorinha, ainda é muito longe a serra das Alturas?
A pastorinha sorri. Sem dúvida, o seu sorriso sabe a medronho e a mel silvestre, e os seus dentes parecem pequenas lâminas de gelo que por milagre ficassem desde o inverno entre os seus labios frescos.
— Ahi de riba já se vê a serra! O garrano baixa mais a cabeça reteza mais as pernas flexíveis e eis a serra, correndo de NO. SO. como uma gigantesca vaga azul, ameaçando subverter a immensa amplidão. Parece que a espuma verde da imponente vaga chega até baixo, à chã, onde uns magros batataes se agarram à terra safara. Parece que basta estender o braço para se lhe tocar.
A ascenção tem sido feita vagarosamente. O pobre barrozão que vem commigo abre já a bocca e respira com soffreguidão. Dentre os penedos veem lufadas quentes. O sol, segundo o adágio regional, começa cozendo a terra.
Caminhamos. Mais uma hora. Os penedos encostam-se uns aos outros, como animaes cançados. Deixa dc interessar a paisagem. Os olhos fecham-se. A redea solta-se das mãos. O garrano vae à vontade. De vez em quando pára, farejando uma poça de agua. A somnolencia esmaga as coisas.
Atilhó
Surgem árvores, vaccas, colmos.
— Ó homensinho ali é que são as Alturas?
O homensinho estende o mento encarquilhado para o sul.
— Oh! não senhora. Ali é Atilhó! Mas as Alturas será um quarto de légua...
Caminhamos, caminhamos. Uma aragem fresca desembocca d’uma portella. O sol a pino. O meu guia parece um rafeiro estafado, arrastando-se com a barriga, pelo chão. Galgam-se dois lanços da via romana. Enfim, a egreja caiada das Alturas surge anunciando a Terra de Promissão.
Mas a serra? A serra agacha-se, como uma fera a formar o salto.
Pergunto a uma velhota:
— D'aqui ao cimo da serra?
A velhota esfrega os olhos roídos da blefarite, ageita o avental de estopinha e responde sacudidamente, núma voz mascula:
— Uma légua das que a velha mediu...
Succumbo.
Antonio Granjo