Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

04
Jun20

Crónicas Estrambólicas

crónica de um primeiro-ministro sobre o barroso - 5


estrambolicas

 

Crónica de um Primeiro-Ministro sobre Barroso 5

 

Mais uma crónica do antigo Primeiro-Ministro António Granjo, um ilustre flaviense. Afinal, além das quatro últimas crónicas, o Fernando (o CEO do blogue) descobriu mais algumas, todas sobre Barroso, num total de 15. Esta descreve a viagem de Boticas às Alturas. Vê-se que o Granjo não conhecia a região e não planeou em detalhe a viagem, o que não tem nada de mal. Duas horas para fazer os 5 km de Boticas à Carreira da Lebre, a cavalo?! Atravessar o Beça num pontilhão? Enganou-se, a famosa ponte Pedrinha já lá estava (há quem diga que é romana ou medieval). É interessante a descrição de Carvalhelhos. Gosto do uso da palavra réco. Não imagino onde seriam as duas antigas estalagens de Almocreves, talvez ainda lá estejam a servir de habitação. A Empresa das águas já existia e até havia anúncios à água no jornal A Capital, no mesmo ano em que saíram as crónicas do Granjo, reparei nisso. É pena, hoje em dia, a via romana nas Alturas (uma das três que ligavam Chaves a Braga) não estar assinalada. Foi destruída? Não me admiraria.

Luís de Boticas

 

1600-c-out-lasanho (8)-granjo

 

SUBINDO À SERRA DAS ALTURAS

As aguas maravilhosas de carvalhelhos

A lenda das léguas que a velha mediu

 

 

De Boticas à serra de Barroso ou das Alturas é meio dia de jornada. As leguas, em Barroso, foram contadas por uma velha que ia andando e comendo dôces. É o que reza a lenda e é o que facilmente se constata mettendo-se a gente a caminho e internando-se, entre as serras interminaveis e os curtos plainos, até às maiores altitudes.

 

Quando monto o garrano, sobre cujo albardão irei, escarranchado e de pernas bambas, em busca do ignoto, pergunto à estalajadeira:

 

— Quantas horas levará a chegar às Alturas?

 

1600-lavradas (66)-granjo-5

Alminhas - Lavradas

 

— É já ali. Chegando às Quintas, vê-se logo Lavradas, e chegando à Cruz das Lavradas vê-se logo a serra.

 

O garrano, a cabeça baixa, as pernas escaneladas e curtas, trépa como um carneiro. O sol nasce. Uma ténue neblina encobre o fundo do valle. Uma briza um tanto áspera pica a epiderme e faz bamboar por cima das paredes os braços das vidreiras, aqui e ali amarelecidas do míldio.

 

Nas corgas prosperam a urze real e a torgueirinha, o sargaço, a esteva, a carqueja, a queiroga. A giesta vê-se raramente. Uma levada canta pala serra abaixo.

 

1600-olas (181)-granjo 5.jpg

 

O sol está já acima do horisonte. Toda a veiga reverbera. Nas perneiras e milho as gottas de orvalho fulgem como diamantes; na face adusta do granito os pedaços de mica rebrilham como flechas; babas d'oiro entrelaçam-se nas ramagens. À beira do caminho, os castanheiros deixam pender, n'um gesto familiar, os ramos verdenegros, d'entre os quaes os ouriços espreitam aggressivamente.

 

A vinha acaba. Nas Quintas, apenas, algumas latadas cobrindo as ruas com as suas sombras propicias, abrigadas da nortada pelas frontarias e protegidas as cepas das geadas por resguardos de cortiça.

 

Dobra-se o alto e na frente estende-se a ribeira do Beça. As restolhas, batidas do sol nascente, têem lampejos de prata. Dois rapazitos, guardando a vezeira do gado, fazem desenhos no caminho.

 

— É muito longe daqui às Lavradas? Um dos pequenos levanta os olhitos azues e aponta com o dedo o limite do horisonte.

 

— Por traz d'aquelle alto...

 

E os seus olhitos, duma transparencia de tarde d'outono, teem essa doçura das creanças que estão a atingir a nubilidade.

 

A caminhada leva já duas horas. Atravessa-se o Beça sobre um pontilhão inverosimil —duas ou três lages compridas em cima de meia dúzia de poldras. Acima, entre os castanheiros, esponta Carvalhelhos. O sol arranca dos colmos reflexos fulvos. As casas são térreas, de pedras justapostas, toscamente aparelhadas ou mesmo sem apparelho, tendo apenas uma porta e um cancello supplementar, destinado a impedir a sabida dos récos, dos pintos e da filharada, quando a porta tem de dar passagem ao fumo da lareira. Verdadeiras habitações primitivas, que, de longe, o sol arruivando os colmos, se diriam cobertos de pelles de animais selvagens.

 

É nésta aldeola perdida, sobrevivencia dos tempos protohistoricos, que brotam riquissimos mananciaes d’aguas silicatadas, para exploração e aproveitamento das quaes se constituiu. parece, uma empreza, mas que jazem ainda, jazem sempre, no mais lamentável e criminoso abandono. Todos os annos afluem a Carvalhelhos os doentes, assignalando-se curas maravilhosas nas condições menos favoráveis, ou, para exprimir toda a verdade, em condições muito proximas da immundicie. As aguas distam da povoação coisa de dois kilómetros. Dois cobertos de colmo protegem-nas das chuvas. Os banhos são aquecidos n'uma cozinha de campanha e ha para todos os doentes, às vezes mais de 50, tres tinas, por junto, de madeira ou folha. Os banhistas mais pobres acommodam-se aos montões nos palheiros. Apesar de tudo, a afluencia é cada vez maior, porque os testemunhos das curas são cada vez mais irrecusaveis.

 

1600-carvalhelhos (518)-granjo-5

Carvalhelhos

Carvalhelhos foi, nos dias gloriosos da estrada velha das Alturas, quando os almocreves, com as suas récuas de machos, eram os donos do transito entre Braga e Chaves, uma paragem forçada. Dois casarões, antigas estalagens, com enormes estrebarias, attestam, esse passado de grandeza e de prosperidade.

 

O sol vae alto. Uma voz possante, do cimo d'um penedo, dominando os cerros, chama à eira; e, já no limite das Lavradas, ouve-se o cantar dos malhos. Para Villarinho da Mó, vê-se a serra golpeada das pesquizas de volframio. Uma rapariga dos seus dezaseis annos, os seios pequenos como os fructos da novidade, furando a camisa de linho, os olhos pretos luzindo como lascas de volfrâmio, sentada no sóco da Cruz das Lavradas, vae fiando a maçaroca de lã e vigiando a cabrada que retouça no montado.

 

— Pastorinha, ainda é muito longe a serra das Alturas?

 

A pastorinha sorri. Sem dúvida, o seu sorriso sabe a medronho e a mel silvestre, e os seus dentes parecem pequenas lâminas de gelo que por milagre ficassem desde o inverno entre os seus labios frescos.

 

1600-r-311 (1)-granjo-5

 

— Ahi de riba já se vê a serra! O garrano baixa mais a cabeça reteza mais as pernas flexíveis e eis a serra, correndo de NO. SO. como uma gigantesca vaga azul, ameaçando subverter a immensa amplidão. Parece que a espuma verde da imponente vaga chega até baixo, à chã, onde uns magros batataes se agarram à terra safara. Parece que basta estender o braço para se lhe tocar.

 

A ascenção tem sido feita vagarosamente. O pobre barrozão que vem commigo abre já a bocca e respira com soffreguidão. Dentre os penedos veem lufadas quentes. O sol, segundo o adágio regional, começa cozendo a terra.

 

Caminhamos. Mais uma hora. Os penedos encostam-se uns aos outros, como animaes cançados. Deixa dc interessar a paisagem. Os olhos fecham-se. A redea solta-se das mãos. O garrano vae à vontade. De vez em quando pára, farejando uma poça de agua. A somnolencia esmaga as coisas.

 

1600-atilho (49)-granjo-5

Atilhó

Surgem árvores, vaccas, colmos.

 

— Ó homensinho ali é que são as Alturas?

 

O homensinho estende o mento encarquilhado para o sul.

 

— Oh! não senhora. Ali é Atilhó! Mas as Alturas será um quarto de légua...

 

Caminhamos, caminhamos. Uma aragem fresca desembocca d’uma portella. O sol a pino. O meu guia parece um rafeiro estafado, arrastando-se com a barriga, pelo chão. Galgam-se dois lanços da via romana. Enfim, a egreja caiada das Alturas surge anunciando a Terra de Promissão.

 

1600-alturas (21)-granjo-5

 

Mas a serra? A serra agacha-se, como uma fera a formar o salto.

 

Pergunto a uma velhota:

 

— D'aqui ao cimo da serra?

 

A velhota esfrega os olhos roídos da blefarite, ageita o avental de estopinha e responde sacudidamente, núma voz mascula:

 

— Uma légua das que a velha mediu...

 

Succumbo.

 

Antonio Granjo

 

 

 

Sobre mim

foto do autor

320-meokanal 895607.jpg

Pesquisar

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

 

 

19-anos(34848)-1600

Links

As minhas páginas e blogs

  •  
  • FOTOGRAFIA

  •  
  • Flavienses Ilustres

  •  
  • Animação Sociocultural

  •  
  • Cidade de Chaves

  •  
  • De interesse

  •  
  • GALEGOS

  •  
  • Imprensa

  •  
  • Aldeias de Barroso

  •  
  • Páginas e Blogs

    A

    B

    C

    D

    E

    F

    G

    H

    I

    J

    L

    M

    N

    O

    P

    Q

    R

    S

    T

    U

    V

    X

    Z

    capa-livro-p-blog blog-logo

    Comentários recentes

    • FJR

      Naquele bocadinho de areia do lado direito da imag...

    • Luís da Granginha

      BOAS FESTAS!E se ainda por aí houver filhozinhas d...

    • Maria Araújo

      Aqui em Braga, temos temperaturas de primavera, ai...

    • Maria Araújo

      Lindoooooooo!Bom fim-de-semana

    • FJR

      Não posso afirmar se a matrícula do carro é de 62 ...

    FB