Dez Andamentos
Do Olhar de Kupka
Do Olhar de Kupka
Que fazes sentado nessa cadeira, Francisco, com esse robe que nem sequer hás-de vestir em Macau, três décadas depois?
Antevês a marcha forçada para a frente de batalha que, antes disso, te obrigarão a fazer, meditando na estóica companhia da tua mulher, caminhando contigo lado a lado, até ser detida?
Ou recordas as searas de Van Gogh, descobrindo as sombras lançadas pelas aves sobre os campos, num voo estilizado que absorve a luminosidade que há-de surgir nos seus nocturnos?
Saturada de tonalidades amarelas e vertiginosas cintilações subtis, onde se envolvem o indiano, o napolitano e o limão, o cádmio, o níquel e os ocres, os adorados amarelos de ouro e de barite da Vieira e ainda o fabuloso amarelo de indantreno da Leonoreta, que nada tem de azul, a tua aura dilui-se no teu olhar.
E essa é a essência do teu olhar. Um olhar de ícone ortodoxo, aureolado, virado para o exterior mas reflectindo, enigmaticamente, o que ninguém sabe ser o teu olhar interior.
Um olhar penetrante, quase anguloso, suportado pelas vaporizadas e suavizadas curvaturas da madeira. Um olhar que nos confunde, ao apoiar-se no suave e hipnótico balancear criado por Thonet e no entrecruzado e padronizado emaranhado da palhinha que se esconde sob essa indolente almofada.
O surpreendente fumo amarelecido do tabaco, livre daquela minúscula mancha branca aprisionada entre uns esquálidos e esverdeados rosas, quase distrai o nosso olhar, que peregrina incessantemente entre mãos e rosto, interrogando-se sobre a ambígua recriação de gestos cristãos protagonizada pelos teus dedos.
Porque escondes o bíblico dedo da criação no seio desse livro? Ocultarás aí a milagrosa criação de uma página com frente e verso, taumaturgicamente abençoada pela tua mão esquerda?
Desistindo face ao hermetismo do livro fechado, cujo misterioso universo branco sagazmente depositaste no regaço, perdem-se os nossos olhos no convulso mar amarelo, acabando por ancorar nesse teu magnético olhar.
Para onde olhas tu, afinal, Francisco?
Ah, sim!... Em abstracto, olhas, essencialmente, para o futuro…
František Kupka (1871-1957)
The Yellow Scale (1907)