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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

23
Mar18

Discursos Sobre a Cidade


GIL

 

TIRADAS DO PÓPULO

 

O Pópulo era um martelão, como soi dizer-se!

Mas de tão trengo, tinha a sua graça!

Enquanto foi vivo, protagonizou muitas estórias para animação dos serões de inverno.

Hoje, ausente que está há muitos anos, haja alguém que as convoque para que se lembre. Também destas pequenas coisas se faz a grandeza das terras quase sem nome!

 

São Cibrão, um pequeno povoado de meia dúzia de fogos, mais conhecido pelo pinouco que lhe guarda as espaldas do que por qualquer outra coisa, viu-o nascer no último terço do século XIX. Aí respirou pela primeira vez estendido num catre surrento do tugúrio de uma pobre cabaneira, que por sinal não fechava bem a gaveta.

Fez-se homem aos emboleques de uma vida esfaimada. A penúria do essencial mirrou-lhe o miolo e transformando-o num taralhoco que mal sabia contar até dez.

Nem na tropa o quiseram, vejam bem!

Contudo, para o trabalho ainda valia alguma coisa. Fazia-o tão-somente pela côdea. Desta toleirice tiravam partido os menos escrupulosos. Todavia, de uma maneira geral, era respeitado. Uns e outros não perdiam, porém, a possibilidade de lhe apanhar as mais rocambolescas estórias que se contavam e reinventavam em cada serão pelas aldeias.

 

Botou barba já tarde, mas não enjeitou a vontade de ter mulher. Ainda assim, tinha consciência de que era difícil arranjá-la asadinha.

Topou uma que lhe servia ali para os lados das Barjes.

Uma matrafona, ainda pior do que ele!

Era uma mulher do povo que não conhecia poleiro certo.

Namorou-a pouco tempo.

Logo que avezou dois tostões, tratou de arranjar padrinho e marcou o casório. Apadrinharia a união o Ti Borges de Fornelos e o enlace teria lugar na matriz de Santiago da Ribeira de Alhariz, com pouco mais de meia dúzia de convidados.

Montou casa num velho pardieiro de pedra solta, coberto de telha vã, com pouco mais de uma dezena de metros quadrados que o Ti Zé Moreiras lhe ofereceu de presente de casamento. Juntamente com o casebre ofereceu também um cordeiro do rebanho, batata, pão e vinho para a boda.

Um desposório de arromba!

No dia aprazado lá foram todos em procissão. A igreja da paróquia ficava a uma boa légua de distância. O padre Fenício botou o latinório da praxe e trocaram-se as alianças de latão que o pilim não dava para maiores luxos. De regresso, para o repasto, a meio caminho o Pópulo tirou os socos e em carpins botou a fugir, inusitadamente, para a povoação, o que provocou grande admiração nos comensais.

Chegou à aldeia esbaforido!

A Tia Benta, que regava o cebolo numa hortita contígua ao caminho, cuidou o pior e perguntou:

- Ó home, tu levas fogo no cu! Ele que dianho aconteceu? Bistes lobo, ou a noiva pôs-se-te no catano e não te quis?

- Cais quê Ti Benta, atão bossemecê queria que eu deixasse os meus combidados na rua? Bim adiente para les escancarar as portas!

- Ó home do catano que maluco me saístes! Mas és dos meus! Bai lá bai!

Passada a lua-de-mel, breve e monótona, o casamento corria sem grandes sobressaltos. Todavia, por muito que a malhadeira malhasse não havia meio da Zidéria alcançar! Cuidando que a culpa seria do marido e com a desculpa da mãe doente, a Zidéria começou a ausentar-se com frequência de sua casa e a dormir, às semanas, noutros poleiros. Atazanado pelos vizinhos, o Pópulo começou a desconfiar. Um dia o Zé da Pinta bufou-lhe ao ouvido que se dizia, à boca pequena, que a mulher se andaria a espojar por quantos fanencos havia das redondezas.

Em nome da honra, decidiu meter mãos à obra e recorreu ao amigo Borges de Fornelos, em quem confiava cegamente, para que o ajudasse na empreitada.

- Ó Senhor Borges, eu careço da sua ajuda. Beja o senhor que a pu** da minha Zulmira me anda a pôr os cornos. Pôs-se-me no catano de casa e anda por aí à tchirga como uma boubela! Bossemecê tem de me ajudar a ir cá botá-la! O senhor leba a sua tómática e limpa sete e eu coa minha fouce tchimpo o resto!

- Ó Pópulo tu és doudo! Eu tenho um revólver mas não é para essas coisas. Tem juízo e compra uns socos! Bai mas é para casa que ela quando lhe faltar o milho há-de tornar! Depois assentas-le duas boas lombeiradas com um estadulho e bais ber que não lhe fica bontade de desaninhar!

E assim foi, contudo, à cautela, substitui as aconselhadas lombeiradas por duas palavras mansas, não fosse o feitiço virar-se contra o feiticeiro!..

 

A vidinha ia-lhes correndo no rame rame de uma pobreza franciscana confrangedora, apanágio da maior parte da população planáltica. Raras eram as jeiras que avezavam e o mais das vezes os trabalhos à ajuda apenas lhes proviam o magro pão de cada dia. Por ausência quase total de leira própria onde colhessem algum sustento, sobrava-lhes uma magra poula que o Ti Zé Moreiras lhes emprestou, por caridade, e que a pus de muito trabalho lhes devolvia meia dúzia de sacas de rambana num ano e dois alqueires de centeio no outro. Alimentos que se esgotavam pelo Natal. O resto do ano viviam-no em penúria quase absoluta.

Ora, um belo dia, Pópulo viu a rama do batatal seca e marcou o arranque. Contudo, faltavam-lhe as sacas onde transportar o tubérculo para o merouço. A conselho da Zulmira recorreu aos favores da casa dos Moreiras e foi falar com a senhora Júlia. Ela estimava-o bastante porque o tinha sempre pronto para acarrar os cântaros de água da fonte e os molhos de lenha do palheiro. Por isso, emprestou-lhe, sem qualquer favor, cinco sacas de serapilheira de 100Kg cada uma. E lá foi o Pópulo todo crontcho com a sacaria ao ombro para a courela dos Lameirinhos.

Foi recebido pela mulher nestes preparos:

- Bô lambão me saístes! Na bez de trazeres sacas piquenas trazes-me estas abantesmas. Agora em bez de colheres 10 sacas só colhes cinco. ódespois quero ber o que larpas o ano todo lambão! Hádes comer cornos mou burro!..

 

Noutra altura precisou de ir à feira do Vidago para ver se comprava uma cabra que lhe desse leite, no caso de a mulher engravidar e ter uma cria. Para o efeito pediu a burra ao Ti Antoninho Moreiras que lha emprestou apenas com a reserva de que a poupasse, sobretudo no regresso, na subida da ladeira da Costeira de Cova do Ladrão a Moreiras. É que a burra era fraca dos tornozelos e podia arriar.

Que sim, que a guiaria à barbela.

Lá saiu de madrugada e mal perdeu o Carregal de vista, montou na desgraçada que bamboleava de traseira com o peso do cavaleiro.

Não conseguindo o negócio da cabrita por falta de metal, no regresso de Vila Verde até Loivos veio apeado, a partir daí d’acavalo.

Quando chegou ao Carregal para entregar o animal, o Ti Moreiras reparou que a burrinha vinha numa desgraça! Completamente derreada!

Questionou-o:

- Ó Pópulo, tu que fizestes à burrinha que ela vem desgraçada?

- Ó Ti Moreiras eu poupei-a canto pude. À binda só a montei no Boticairo em Loibos e foi até aqui!

- Saiste-me um boa besta Pópulo! Arrebentaste-me a burrinha, Costeira acima, lambão! Nunta bolto a emprestar. Por outra bez bais à pata!..

 

Noutra ocasião precisou de ir à feira de Carrazedo, a mor de comprar uma reca para cevar.

A Zulmira pôs-lhe as uvas a peso! Deu-lhe as ordens e uma nota de cem mil réis, limite para o negócio, exigindo-lhe que por aquele valor trouxesse um animal bem-parecido que antes de cevar pudesse parir meia dúzia de leitões que rendessem tão necessitados cobres.

Lá foi ele todo contente pela madrugada de um dia de março. Levava no bolso uma baraça de sisal para prender a requinha no regresso, na carteira uma nota de cem e no peito uma vontade férrea de um bom negócio. É que apesar de tudo o Pópulo não era assim tão azémola quando se tratava de negociar, tanto assim que conseguiu um animal apresentável por apenas noventa paus! Atou-lhe a guita numa pata traseira, cortou uma fronça pioneira para lhe enxotar a mosca e fez-se à estrada. Passou por Argemil sem parar, quiçá por falta de tasca, só o fez em Serapicos. Atou o animal a uma argola onde se prendem os cavalos e pediu um copo de três na taberna do Serafim.

Sem embargo, antes de começar a beber, alguém o interpelou.

- Ó Pópulo, aquele requinho que está preso é teu?

- Reco não, reca, que eu bem le bi o letreiro entes de a mercar! A minha Zulmira encomendou-me uma reca e é uma reca que eu le levo.

- Boa te bai, já nem és capaz de diferençar um cu de uma senisga! É um reco mou burro, num é uma reca!

Foram tirar teimas!

Tratava-se, de facto, de um reco, cujas bolinhas, proeminentes, prometiam garboso berrão!

- Fosca-se Ti Casemiro, estou fod***! A minha Zulmira vai-me partir os cornos! Estou que bou mamar umas estadulhadas lombo abaixo, por isso, que seja o que Deus quiser. Bou torrar o troco em binho e pôr-me como uma naça, assim com’assim pode ser que doia menos!

 

Passado anos a vida permitiu-lhe trocar de casa para uma outra maior que começou a construir há muito tempo com a ajuda de alguns amigos. Por isso, cuidou de vender o pardieiro que lhe oferecera o Ti Moreiras aquando do casamento.

Fez negócio com o Ti Jaime das Malhadeiras que precisava daquele espaço para meter uma tchibinhas de leite que havia comprado na feira dos Santos.

Deu-lhe o tempo necessário para que libertasse o espaço dos seus parcos tarecos.

Porém, um belo dia, quando passava no caminho, viu o Pópulo emplouricado no telhado a tirar a telha de meia cana que chegava cuidadosamente à Zulmira que a empilhava na borda do caminho.

Interpelou-o:

- Ó Pópulo, tu que está a fazer?

- Estou a tirar a telha pr’á minha casa noba!

- Atão tu bendestes-me a casa e agora bais tirar-le a telha?

- Pois diz bem, eu bendi-le a casa num le bendi a telha, ora essa!

Foi um trinta e um para convencer o Pópulo a arrepiar caminho!

 

Depois de muito porfiar o casal acabou por ter dois filhos, que apesar de tudo não conseguiram criar.

Um deles morreu ainda pequeno com uma doença banal.

O outro foi criado, por misericórdia, na casa do Ti Moreiras do Carregal, onde foi paquete e se fez homem de sucesso.

O Antero, assim era a sua graça, ainda me viu nascer, contudo, uma doença fatal levou-o cedo para Santa Leocádia!

 

Coisas da vida.

 

Tiradas do Pópulo que aqui se lembram com saudade e muito respeito!

 

Gil Santos

 

 

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