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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

28
Set18

Discursos Sobre a Cidade


GIL

 

DESGARRADAS

 

As noites do inverno em Trás-os-Montes continuam mais longas do que em qualquer outro sítio.

 

Após o ocaso começa a gear e ainda a hora da ceia vem longe já o carambelo emprenha de diamantes os galhos das árvores e os beirais dos telhados.

 

Uma melancolia álgida acompanha a cria que recolhe lusco-fusco às cortes e o homem-bicho que se esgueira para o conforto do tição.

 

Manja-se do que o outono colocou no celeiro e aguarda-se, pacientemente, que desponte um dia mais ridente do que o que pereceu.

 

O tempo transmontano insiste em correr pachorrento, ao ritmo do crescimento dos buxos dos adros das capelas, apesar da modernidade ir preenchendo os tugúrios com a tecnologia experimentada nos espaços urbanos.

 

Um privilégio cada vez mais raro que importa manter (?).

 

Há anos, não muitos, quando as candeias de azeite alumiavam, mortiçamente, essas noites gélidas, as pessoas consumiam as horas do serão tagarelando à volta de um canhoto de carvalho negral que se consumia, tranquilamente, na lareira dos casebres. Aproveitavam para botar contas à vida, os queixos a um cibo de aguardente, quem na tinha, para lamentar a má sorte ou para contar estórias, algumas delas reinventadas, mas com epílogos quase sempre felizes. Outras vezes juntavam-se na casa do forno, se o nevão o permitisse, consumindo lugares comuns e ausência de novidades.

 

Uma vida triste!

 

Na casa da Ti Joana Caçolina tudo se passava no rame-rame de sempre.

 

O Ti Antero, seu marido, era o chefe da família ia para mais de uma vintena de anos. Dedicava-se à agricultura. Contudo, tinha jeito para a carpintaria e sempre que podia não rejeitava uns magros tostões que lhe pudessem advir desta arte.

 

Tiveram filhos muito tarde.

 

A Ti Caçolina chegou a pensar-se matchorra, não fora ter convencido o marido a acompanhá-la à Misarela na foz do Regavão. Passaram lá uma noite fria, mas valeu a pena. Emprenhou de gémeos aos quarenta anos.

 

O parto não foi muito normal e se não fosse a Tia Cândida a ajudar a dilatar as carnes, ressequidas, da parideira e os gémeos não teriam vencido. Mas venceram e deram dois rapagões de estalo: O Delmino e o Delfim.

 

O primeiro, aos doze anos, já se gabava de fazer a barba, embora reconhecesse que raramente precisava de afiar a navalha!

O Delfim, com a mesma idade, já pintava!

 

Não sendo uma família abonada, nem tão pouco remediada, também não se podia dizer que fosse pobrezinha. Vivia do que a terra dava e, não sendo muito, sempre se compunha a mesa com a carpintaria que ajudava a controlar os calotes na mercearia do Magalhães.

 

Os rapazes eram dados às artes musicais.

 

De latas faziam bombos, da casca das varas de castanho flautas, das bancas de tripé concertinas e passavam as noites a oferecer grandes concertos.

 

Umas vezes cantavam à desgarrada, imitando os cantadores que observavam pelas romarias, com improvisos bem conseguidos, para gáudio da família, outras remedavam os cantores da moda, que ouviam no rádio da taberna.

 

Era uma alegria na casa da Ti Joana!

 

Uma noite, de inspiração desusada, os rapazes ajustaram, de aposta, um cartar ao desafio. Seria vencido o que primeiro perdesse a rima.

 

Quadra dum lado, resposta do outro, e a coisa foi-se amanhando, com tal sucesso que o Ti Antero soltava estridentes gargalhadas entre dois golos de maduro tinto, do de Cobaladrão, que aquecia ao borralho, na pitxorra preta de Nantes.

 

Entrementes, o Delmino, em resposta a um atrevimento do gémeo, botou a rima seguinte:

 

Boa noite meus senhores

No fundo d’um alguidar meu

O meu pai é serrador

Serrou os cornos ao teu!

 

Não havia ainda terminado e já a Caçolina, sua mãe, puxara a culatra atrás pespegando tamanho bofetão nas trombas do cantador que lhe afocinhou os queixos na cinza da lareira! O rapaz ficou tão atromelizado que precisou de muitos anos para perceber o que justificara aquela atitude marada de sua mãe!

 

Uma coisa é certa, nunca mais, a partir daí, houve noutro serão cantigas à desgarrada. Pudera, é que a Joana Caçolina tinha imenso empenho na sua fidelidade matrimonial!..

 

O Ti Antero inchou de empáfia por ter sido considerado, simultaneamente, o protagonista e a vítima.

 

Também ele precisou de muito tempo para perceber aquela atitude inesperada da sua querida esposa!...

 

Gil Santos

 

 

 

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