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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

22
Fev19

Discursos Sobre a Cidade


GIL

Caldo de coirato

 

Ter água canalizada em casa era um luxo quase proibido nas aldeias rurais dos anos quarenta. As fontes públicas resolviam todas as necessidades. Fossem os fontanários, ou as populares fontes de mergulho, toda a gente aí se abastecia do precioso líquido. Nos fontanários, os cântaros de barro de Nantes, e mais tarde os de folha-de-flandres, aparavam a água da bica, que nem o verão, por mais quente que fosse, conseguia escoucar! Nas fontes de mergulho recolhiam-na de uma espécie de poço onde se mergulhavam as vasilhas. Está bom de ver que nestas tanto mergulhava um cântaro limpo, como o balde dos recos que muito provavelmente teria andado aos emboleques na estrumeira! Por isso, a higiene não era um predicado destes usos ancestrais, nem tão pouco uma preocupação!

 

E assim se vivia desde os alvores da história!

 

O Carregal não fugia à regra.

 

No Prado, num recanto sombrio, olvidado, ainda lá está a dita cuja. Acedia-se à água através de uma grande janela com um parapeito de perpianho muito gasto pelo uso de séculos.

 

A fonte, há muito andava a meter nojo aos mais esclarecidos do lugar, nos quais se incluía o Ti Moreiras, antigo combatente da guerra dos dezassete. Na impossibilidade de disciplinar os hábitos da gente, por virem dos alvores da sua existência, pensou o Ti Moreiras construir poço próprio no pátio novo de sua casa, para se salvar daquela nojeira Tanto mais que na altura estava na moda o furo artesiano, encamisado a lusalite.

 

Para o efeito, contratou um artista de Serapicos. Acertado o preço, encomendou-lhe o trabalho. Semana e meia bastou para que de um furo de quarenta metros jorrasse água a rodos. O precioso líquido era conduzido à superfície por uma bomba de alavanca, um arcanho a que se dava o pomposo nome, afrancesado, de cacherelle. Abanava-se o zingarelho, para cima e para baixo, e após meia dúzia de bombadas era um regalo ver jorrar a água, aos golos, pelos queixos do ferro fundido. Funcionava que era uma maravilha! Porém, passado algum tempo, a água começou a sair tão ferrugenta e com tão mau gosto, que até os animais bitchos a rejeitavam. Seria, por’i, da ferrugem do cano que a trazia à superfície, ou, quiçá, do lusalite, quem sabe? Foi uma desilusão, gastar tanto dinheiro e ter de recorrer, de novo, à fonte do Prado para fazer o caldo!...

 

Não restava, porém, outro remédio!..

 

Naquele tempo, a iluminação das casas era fraquíssima. A candeia a petróleo ou a azeite, mesmo auxiliada pela labareda das fronças da giesta da fogueira, não permitiam, sequer, ler o jornal, quanto mais enxergar o que se jantava!

 

Ora, foi exactamente desta dificuldade que nasceu o caso que se relata.

 

Anoitecia já quando a Aida, criada da casa do Ti Moreiras, se apercebeu de que o cântaro da água estava escoucado. Como era hora de fazer o caldo havia que ir rapidamente à fonte. Chegou, de mergulho encheu o cântaro, pô-lo à cabeça sobre a rodilha e nem sequer teve tempo para dois dedos de conversa com os rapazes que aproveitavam o ensejo para cortejar as moças na fonte.

 

Directamente da vasilha encheu o pote, e quando a água fervia, juntou a batata, a couve o feijão e coirato do porco e tudo o mais que fazia gordo o caldo do lavrador. Deixou-a ferver até apurar enquanto foi dar de comer aos coelhos de que se havia esquecido. Na hora de cear, como ao tempo se dizia, era comum comer o caldo somente no final da refeição.

 

Manel Cabeça Grande, o criado, apreciava rilhar os coiratos, ainda mal cozidos, que deixava, religiosamente, para a sobremesa. Mascá-los, vagarosamente, devia dar-lhe o mesmo gozo que os chicletes dão hoje à rapaziada! Digo eu!

 

A Aida lançou-lhe o caldo na malga preta de Nantes, À luz, mortiça, da candeia tragou-o apressado pois esperava-o um serão de lerpa com os amigos.

 

Coirato na boca, trincou, mascou, voltou a trincar, mas havia qualquer coisa de diferente naquele cibo do isco do caldo.

 

O gosto não lhe era familiar!

 

Não lhe parecia mau, o problema é que o bocado não dava de si como habitualmente, à força trituradora das suas mós. Teimou, insistiu, voltou a teimar e à falta de paciência, chegou-se ao canto da lareira, onde a luz era mais forte à conta da labareda de uma fronça que ardia, e botou o petisco para dentro da malga!..

 

Horror dos horrores!...

 

Espanto dos espantos!...

 

Diabo dos diabos!...

 

Oh miséria excomungada!...

 

Era uma salamandra que entrou à socapa para o cântaro e foi cozida com os feijões e as couves!..

 

Era para esgomitar o caldo, mas, ao fim e ao cabo, soubera-lhe tão bem que era um desperdício fazê-lo!..

 

Gil Santos

 

 

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