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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

26
Fev16

Discursos Sobre a Cidade - Por Gil Santos


GIL

 

A SEMENTEIRA DO BERBIGÃO

 

O Jacolino Farragatcho nunca tinha visto o mar. Ouvira falar dessa imensidão de água salgada ao mestre Matos na escola de Adães, mas nada mais do que isso. As únicas águas salgadas que conhecia eram as do alguidar onde a mãe demolhava o bacalhau e as do pote de três pés onde faziam o caldo. De resto, imagens do oceano, só as que vinham no livro da 3ª, contudo, eram tão fracas que pareciam da poça do Pado que o povo do Carregal usava para regar as hortas. Muita água junta só mesmo a da tal Poça, ou a do tanque do Frederico onde a canalha no verão lavava as catotas do inverno.

 

O Jacolino bem ouvira o Nano da 4ª a declamar este poema de Pessoa:

 

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

 

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu.

 

mas, também não o entendeu, nem ninguém, nunca, lho explicou.

 

A bem dizer, o mundo do Farragatcho reduzia-se ao termo do Carregal e aos horizontes que vislumbrava desde o Brunheiro, para os lados do Larouco, do Alvão e da Padrela. O Larouco tinha-o como sendo a burra preta do Gripino deitada num lameiro, o Alvão como a cabeça do touro do Farruco, falho da cornadura, a Padrela, ali em frente, como uma bruxa douda que lhe tolhia os raros dias de sol nas invernias.

 

1600-brunheiro (352)

 

E se do mar apenas tinha a imaginação, pouco fértil, diga-se de passagem, então daquilo que lhe podia pôr na mesa, é que nem pela cabeça lhe passava. Mesmo as arganas do bacalhau, que ralas vezes avezava, eram para o Jacolino apenas ossos, finos, de algum animal mítico que teria caído numa salgadeira, como as pás e os presuntos do reco que matavam pelo Natal. Sabia ele lá bem que o bacalhau nascia para lá do Larouco, era um animal de sangue frio que respirava por guelras e pastava nos lameiros de água gelada da Terra Nova!

 

Boa te vai!

 

Para ele o que interessava, verdadeiramente, era o que lhe enchia a pança: pão, batatas e caldo. Não é que desprezasse um ou outro doce que alguém lhe trouxesse da festa do Fernandinho. Aliás, pelava-se por eles, mas rilhava-os poucas vezes. E também gostava da meia sardinha que lhe tocava uma vezita por ano! Mas afinal não tinha tempo para se habituar a estes mimos, por tão raras serem as vezes que lhes tocava.

 

Jacolino, como quase todos os do seu tempo, deitava-se com as galinhas, pois a candeia não podia estar acesa muito tempo que o petróleo não se colhia nas corgas do Belão! Tinha de se comprar ao azeiteiro que vinha ao Carregal uma vez por mês. E era caro!

 

De resto era trabalho, fome e porrada!

 

Vida dura a de Farragatcho!

 

Em casa enfardava quase todos os dias de um pai tirano. Na escola, quando ia, de um professor velhaco como as cobras. Pelo caminho, dos amigos, pois era o bombo da festa. Mas, verdade seja dita, o moço tinha catchaceira. Quando apanhava, oupava como o sapo e não se ouvia daquela boca um único lamento ou dos olhos vertia uma lágrima que fosse! Contudo, dentro de si mesmo jurava vingança.

 

- Um dia - pensava - habeides de as pagar todas, filhos dum cão!...

 

O pai? Deixassem-no mijar na biqueira dos socos!...

 

O professor Matos? Deixassem pintar as cerejas na cerdeira da Sainça!...

 

Os amigos? Deixassem-nos pousar! Um de cada vez haviam de cair como os melros na esparrela!...

 

Era costume aparecer pelo Carregal, de mês a mês, a Gertrudes Mafarrica com a mula carregada de caixas de peixe que ia buscar à estação do Vidago e que vendia pelas aldeias, desde a ribeira ao planalto. Normalmente o Carregal era a última povoação da ronda e por isso sobravam as sardinhas mais ordinárias e moídas.

 

berbigao.jpg

 

Ora, uma ocasião, na sua ronda, esgotou-se-lhe o stock de peixe e para o Carregal sobrou apenas meia caixa de berbigão em saldo. Quem quisesse fazer gosto ao dente, com aquela fruta do mar, tinha uma oportunidade única de aproveitar o preço baixo e comprar umas conchinhas para a caldeirada.

 

Vinha mesmo a calhar porque a mãe do Jacolino andava de desejos e há muito tempo tinha pedido ao marido umas ameijoas para cozinhar à Bolhão Pato. Nunca as comera, mas ouvira a comadre dizer que eram de trás da orelha. Já que não podiam ser ameijoas, que fossem as primas berbigonas! Importante era que o rebento não nascesse com o céu-da-boca aberto por insatisfação daquele desejo. Faltasse o pão para a ceia, esta oportunidade, o extremoso marido, não podia perder.

 

Mal ouviu a gaita rouca da peixeira a anunciar a sua chegada à eira, foi-se à mesinha de cabeceira e botou a mão a cinco marréis.

 

Comprou dois quilos.

 

Nem ele nem o filho andavam de menino, mas, que se cosesse, também eram filhos de Deus!...

 

Foi todo contente para casa com a encomenda. A mulher ficou feliz e mandou-o à horta colher umas cebolas novas, uns pimentos e umas malaguetas para o guisado. Foi num pé e veio noutro. A Luísa Boubela não sabia como cozinhar o berbigão mas o que interessava? Guiava-o como quem faz carne guisada! Fez então um estrugido com muita cebola e pimento, botou-lhe cinco malaguetas e quando lhe pareceu apurado, juntou-lhe quatro tiras de presunto. De seguida espetou no pote os dois quilos de berbigão que ia mexendo com uma colher de pau.

 

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O cozinhado exalava um cheiro divinal! Um odor que desconheciam de todo. Salivavam como cães! E a sorte da mãe é que o raparigo não estava para nascer. Se estivesse, viria mais depressa só para apreciar o cozinhado da mãe!

 

Quando o achou pronto, vazou-o num alguidar de barro. As conchas, mais fechadas do que abertas, nadavam num caldo saboroso de cebola e pimento. Cada um por si lambia, chupava o molho sonoramente, molhava cibos de pão na calda, enfim, um forrobodó!

 

O Jacolino, primeiro, achou que também as conchas eram de comer, mas depressa se deu conta que de comer era só o miolo, as cascas eram só de lember.

 

Consolaram-se!...

 

No fim do lauto repasto cada um tinha à sua frente um merouço de conchas. O Jacolino pensava:

 

- Que desperdício, carne tão boa e tanta carapaça inútil!...

 

Entretanto, o Adelino Beiças, que na aldeia era pior do que as coscuvilheiras, passando na rua e cheirando-lhe a coisa estranha, para não jurar falso, foi-se inteirar da novidade. Entrou na cozinha e deparou-se com o espetáculo das conchas vazias sobre a mesa. Se fosse servido que bebesse sequer ao menos um copo e comesse um cibo de pão, berbigão já não havia. Aceitou o copo e molhou um miolato de centeio fresco no alguidar para, pelo menos, sentir o gosto da coisa!

 

Gostou!

 

Raivoso, por não ter tido direito a quase nada, quis vingar-se contando uma história, rebuscada, sobre a origem do berbigão! Uma história do arco-da-velha que acabava com a sementeira das cascas e com uma colheita prolífera no ano seguinte.

 

O Jacolino que experimentasse num cantito da cortinha, que ele ia ver!

 

1600-carregal (140)

 

No dia seguinte não perdeu tempo, foi-se à leira e fez uma lavoura que se podia ver! Semeou as cascas do berbigão em sulcos que abriu com uma sachola de ganchos como se fossem para semear batatas. Regava a cultura todos os dias como devia ser, sachava-lhe as ervas daninhas logo que elas deitassem orelhas e apreciava as beiças do Adelino a arreganharem-se cada vez que passava pelo caminho da capela e lhe perguntava pelo renovo!

 

Passaram muitos anos e o Jacolino, ainda hoje, tem esperança que aquelas plantas nasçam e frutifiquem em berbigões para satisfazer os desejos da mulher que anda prenhe.

 

Porém, não há maneira!

 

- Deve ser da puta da terra que só sabe dar batata, centeio e castanha neste bendito Planalto do Brunheiro!

 

Gil Santos

 

 

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