O Factor Humano
Socorro (3/3)
Nota de abertura: " O quadro que se descreve tem um enquadramento real, um pouco melhor explicado no final completo do conto. São pensamentos de alguém que está numa situação complexa..."
Socorro!
(terceira e última parte – 3/3)
Mas eu não sei o que é o cantar dos pássaros. Nunca ouvi nada. Nem o silêncio.
Outra vez o cheiro a lavado.
Um arrepio percorre-me, no que antes eram os caminhos da dor.
Uma ânsia de sentir a mão que assim cheira, na minha mão, nos meus cabelos.
Deve ser uma mão bonita, senão como pode cheirar tão bem e ser tão meiga?
Será que é essa mão que aclara o nevoeiro?
Queria tanto ver para além desta neblina. Como é a mão com um cheiro tão límpido?
Só agora reparei que desapareceu o frio e não voltou. Levou com ele as dores.
O cheiro a sabão límpido lavou tudo. Levou tudo. Para onde não sei. Mas queria que não houvesse caminhos de retorno, que as dores se perdessem no nevoeiro e se extinguissem quando ele se extinguisse.
E quero que a mão regresse, envolvida no cheiro, e me devolva os carinhos que alguém me roubou há tanto tempo.
Que me importa se estou morto ou se não.
É assim a morte? É melhor do que quando estava vivo, preso nos desfiladeiros da dor.
Mas se estou vivo porque não vejo?
Quem me roubou a luz vai devolver-ma, ou fico apenas no silêncio, reduzido a um mapa de cheiros, folheado por uma mão macia?
Procuro arrumar as ideias, mas o sono não dorme e volta a embalar-me.
Sonho ou penso? Penso que sonho ou sonho que penso, mas há rios e estevas e sombras frescas, cheiro a vida.
Uma mão, a mão, volta a acordar-me. Apagam-se os rios e as sombras, fica só o cheiro a vida.
Tão intenso, o cheiro, que se ouve a vida, mesmo que eu não saiba o que isso é.
Manuel Cunha (Pité)