O Factor Humano
Rios Impossíveis
Os rios impossíveis
(6)
Trazia sempre com ele um búzio, branco e esverdeado, que ocupava toda a palma da sua enorme mão. Embrulhava-o num pano de camurça e colocava-o num saco. Posto esse saco a tiracolo ficava completa a figura mítica do "homem do búzio", que percorria o interior do País no mês de Agosto e era recebido com alegria e respeito em cada aldeia aonde chegava.
Só ele decidia quem podia encostar o ouvido ao búzio e exigia completo segredo sobre tudo o que sentissem, sob compromisso de palavra de honra.
Muito para além da perda da honra, coisa que nesse tempo era sagrada, havia uma outra ameaça, ainda mais eficaz, quem contasse nunca mais podia encostar a cabeça ao búzio.
Eram espantosas as expressões de cada um dos escolhidos. Com a cabeça encostada ao búzio, abriam-se sorrisos, olhava-se para o infinito, algumas vezes escapava-se até uma lágrima feliz.
O surdo-mudo de uma aldeia quis encostar o ouvido e, depois, não foi fácil afastá-lo do búzio que nunca saía da mão do seu guardião.
Fotografia de "Boubac"
Os anos foram passando e era tal o fascínio das pessoas, com todo o foco no búzio, que ninguém se apercebeu do envelhecimento do seu guardião.
As pernas pesavam-lhe cada vez mais, a última aldeia obrigava-o a uma íngreme subida, para então descer ao vale, na encosta a sul. A respiração tornava-se mais difícil, a vista ia-se turvando como nunca lhe acontecera.
De repente pressentiu que ia morrer e teve aguda consciência do seu segredo, de ele próprio nunca ter encostado a orelha ao búzio, deixado pela sua mãe, que ele nunca chegara a conhecer.
Sentou-se, ou melhor deixou se cair, num último esforço tirou o búzio do saco, pousou-o no chão, e deitou-se de lado, com a cabeça encosta a ele.
Morreu com um sorriso sereno.
Do búzio foi nascendo água, num caudal crescente que foi descendo da serra, semeando amieiros nas suas margens. E formaram-se represas, com levadas e moinhos, com mós que iam parindo farinha.
Manuel Cunha (pité)