O Factor Humano
Rios Impossíveis
Os rios impossíveis
(9)
Não precisava de invocar as suas origens nem o seu trajecto passado. Era filho de um rio mas tinha dado a volta por cima e partido à conquista do seu Mundo, cruzando um arco de granito, sobre o pai.
Fotografia de Inês Torrado
Não tinha afluentes e o seu caudal era constante.
Levava a água para a aldeia de C. e por isso alguns lhe chamavam levada, outros agueira. Na realidade ele revia-se como um rio - quem sai aos seus não degenera - costumava dizer.
Fotografia de Inês Torrado
Até se gabava de ter trutas, embora escassas e, em geral, pequenas, que se deixavam levar pela corrente, desde a longínqua presa onde nascia.
Mas a magia deste quase rio, mais do que rio, era a de visitar as casas da aldeia, entrando em cada uma delas, em leito de granito, por uma abertura rente ao chão, na parede voltada a norte.
E era ver as mulheres a colherem a água com um púcaro, enchendo o pote pousado nas brasas, ou a pia de granito onde lavavam a louça.
As águas sobrantes saíam pela parede voltada a sul e eram usadas para regar a horta ou matar a sede ao gado.
Levavam com elas os ais nocturnos do prazer e da dor, lavavam os sonhos das crianças embaladas pelo rumor da corrente desse quase rio, mais do que rio.
(com um abraço ao meu avô, Lelo da Tenenta, que num dia de Abril de 1972, me levou com ele à aldeia de C.)
Manuel Cunha (pité)