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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

18
Ago16

O Factor Humano - Maximino Cunha


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Maximino Cunha

 

No dia 4 de Agosto à tarde, pensei que os rios tinham deixado de correr.

 

Parecia-me impossível, que as águas tivessem vontade de nascer, correr, brincar com as pedras, aninhar as trutas, saciar-me a sede.

 

Mal pude libertar-me das prisões, corri sozinho para ver se era verdade, se tudo acabara. Se o impiedoso verão dos verões tinha finalmente chegado, por acaso, nesse dia de Agosto. Mas era só dentro da minha tristeza, que a água morrera. Reencontrei a segurança ao ver que no regato de Cervos, continuava a correr a água de sempre e uma truta minúscula atacava, sem sucesso o saltão.

 

Maximino Cunha, para minha sorte o meu pai, foi uma das pessoas que mais gostou das nossas terras, das nossas serras, das nossas águas, das nossas gentes.

 

Este é o blogue adequado, para lhe prestar uma homenagem, que já antes publiquei.

 

Por ele, mais do que por ninguém, chamei às minhas crónicas “o Factor Humano”.

 

Ensinou-me a estar sempre do lado dos mais fracos, dos explorados, dos oprimidos.

 

Ensinou-me a importância do carinho e da ternura. Sem vergonhas. O bem que o mimo faz e que não é ele que faz a gente “mimada”.

 

Ensinou-me a pensar pela minha cabeça. A pensar o que digo e a dizer o que penso. A não ter medo de estar sozinho na minha ideia. A olhar-me ao espelho, bem fundo nos próprios olhos. A tentar ser sempre corajoso.

 

Ensinou-me que o mais profundo humanismo é ser comunista, mas que há múltiplas formas de humanismo.

 

Ensinou-me que nas escolas, o importante não são as classificações, mas sim o que aprendemos realmente. Ensinou-me a ser médico a sério. No Serviço Nacional de Saúde. A ouvir, perguntar, voltar a ouvir, tocar, sentir, pensar. A não ficar indiferente ao sofrimento, nunca. Mas a transformar em prazer o trabalho clínico, sempre. A respeitar as rugas e as verrugas, o cheiro a suor e o cheiro a fumo. A entender melhor as perturbações psíquicas.

 

Ensinou-me os rios e os regatos. Cada um deles, devagar. No verão e no inverno. Cada corrente, cada presa, cada remanso. Como eles nasciam e para onde iam. E as histórias das águas.

 

Mostrou-me a natureza, cada árvore e cada planta, o cantar dos pássaros e a magia dos bichos. As estações do ano, forma de viajar sem abandonar o nosso sítio. Os jardins e as flores, todas as flores, cada flor, sempre as flores.

 

Tentou ensinar-me, sem sucesso, as serras, os pontos cardeais e todos os mapas, que tinha na sua cabeça, mas que nunca couberam na minha.

 

Depois ensinou-me a pescar. Digo sempre que, se eu conseguir aprender, qualquer um consegue. Apresentou-me as trutas, os últimos deuses do mundo.

 

Pescámos juntos “muita vida”, tantas vezes com o mano velho. Muitas molhas, muito suor, muitos silêncios, muitas conversas, tantas canções. Poucas zangas e muito prazer. Merendas dos céus, águas frescas, vinhos, champanhes e sestas.

 

Ensinou-me o prazer da água, do leite e dos vinhos, o gosto pela diversidade, pelos alimentos puros, sem medo dos requintes, sem medo de experimentar novidades.

 

Levou-me, com o mano velho e tantos amigos, à caça, a jogar futebol, a tomar banho nos rios. Grandes lanches que ele oferecia, quase sem repararmos nisso, naturalmente.

 

Reduziu o dinheiro ao seu papel. Nem mais, nem menos. Nada de nós está à venda. Nunca. A herança, somos nós, as histórias, os poemas, as canas, as roupas velhas. E por isso é tão valiosa.

 

Ensinou-me as músicas, as canções, os cantores. A ouvir os poemas e a transformá-los.

 

Ensinou-me os livros de aventura e os clássicos. Emílio Salgari e Homero. Miguel Cervantes e a colecção “seis balas”. A ler e reler. A aprender com o que lia e a disfrutar das palavras.

 

Ensinou-me os museus, quadro a quadro, pintor a pintor. Os pormenores e o conjunto. A misturar e a transformar quadros, músicas e poemas.

 

Levou-me a viajar pelo mundo com a minha mãe e o mano velho. Para ver as paisagens e as pessoas, andar a pé, nadar, ir aos museus, comer, conversar, cantar…

 

Mostrou-me o respeito que devemos ter na família. Como é bom estar com a nossa companheira, conversar, sentir, rir. Só nós.

 

Como se abre os braços às mudanças familiares.

 

Sempre teve orgulho na sua companheira. Admiração profunda, quase dependência. Um prazer em conversar, em estar, em recordar juntos. Alegria de lhe dar tudo, flores, livros, poemas, roupas, pedras, desenhos.

 

Sempre transmitiu bem o seu orgulho nos filhos e nos netos. Divertia-se, ensinava-os, ralhava-lhes, nem sempre com razão. Acarinhava-os tanto!

 

E um dia partiu. Sem avisar. Sem pesar.

 

Parecia que se estava a sorrir.

 

Mas já não estava cá.

 

Não é nada fácil. Mas, como ele repetiu, “al mal tiempo, buena cara”.

 

Mas sempre a vida!

 

Manuel Cunha (Pité)

 

 

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