O Factor Humano - O nosso tempo
O nosso tempo
No outro dia, fui para a cabana do meu compadre Zé Pires, ler a Montanha Mágica do Thomas Mann. Sítio perfeito para uma leitura tranquila.
No alpendre da cabana mágica, mergulhei no ambiente do sanatório para tuberculosos, nos princípios do século XX, em plenos Alpes Suíços.
O essencial das mais das oitocentas páginas do romance anda em torno das questões do tempo. Das suas texturas. Das diferenças entre o tempo real, cronográfico, aparentemente sempre regular e a percepção que dele temos. Da monotonia e do tédio. De como, paradoxalmente, a monotonia dos dias sempre iguais, nos faz atravessar grandes períodos, praticamente sem nos apercebermos. E, inversamente, como a diversidade e riqueza dos dias, faz com que haja períodos, por exemplo uma revolução, dos quais temos a percepção de terem passado num ápice. Isto apesar de haver neles, dias que nos pareceram eternos, tal o número de acontecimentos e de emoções pelos quais passámos.
Cem anos depois, o tempo é, talvez mais do que nunca, uma das grandes questões da nossa sociedade.
A crise actual reduziu de múltiplas formas o nosso tempo. Para aqueles que têm emprego, diminuíram o número de dias de férias, retiraram-nos quatro feriados, aumentaram a jornada oficial de trabalho de uma parte dos funcionários públicos. Adicionalmente, um pouco por todo o lado, estenderam-se os períodos de trabalho muito para lá do que estava estabelecido, quase nunca com a devida remuneração. Adiaram-se as idades de reforma.
Paradoxalmente, para centenas de milhares de desempregados, aparentemente o tempo sobra…
Mas é na aceleração do tempo, leia-se nos ritmos de trabalho, do dia-a-dia e até no desfrutar do lazer, que a mudança é mais rápida e mais radical. Em ruptura completa com os ritmos e os ciclos da natureza. Nunca a ruptura foi tão completa, nunca nos afastamos tanto e tão depressa do meio ambiente, no qual vivíamos (vivemos?). É um erro grave que tem consequências sérias, presentes e, principalmente, futuras.
Criamos janelas artificiais no tempo, a que chamamos férias e em que geralmente mantemos ou exacerbamos até, os nossos ritmos, fugindo como o diabo da cruz, da liberdade do ócio, do prazer do tempo partilhado, do partilhar do tempo com prazer.
De alguma forma, o tempo de que falo, é a vida. No frenesim para que nos empurram, perdemo-nos das estações, esquecemo-nos dos cheiros, confundimos o “para sempre” com o instante. Alguém nos convenceu que a vida está nos écrans digitais e que os dedos não são para acarinhar o prazer. Desaprendemos os instintos.
Com este acelerar do tempo, qualquer dia estampamo-nos, porque numa a curva apertada, nos falta a memória.
Na cabana do meu compadre, o tempo é meu. Às vezes é ainda melhor e o tempo é nosso. É então que o tempo é mágico.
Manuel Cunha (Pité)