Ocasionais
* boa pequena*
*boa pequena*
Absorvido pela leitura, e pela meditação em que ela me mergulha, não reparei nas pessoas que se sentaram às mesas próximas de mim.
Fui tomar o meu pingo da tarde a um novo CAFÈ, onde o ambiente consente a leitura sossegada, sem a perturbação de vozearia e das «carvalhadas e castanheiradas», que por aqui são a sonora e colorida exibição da personalidade e da esmerada «boa educação» da gente aprimoradamente culta, desta minha alargada vizinhança.
- Olá, Luís!
Surpreendeu-me, quase como um susto, esta exclamação.
Levantei os olhos desde *Os Miseráveis*, mas não vi ninguém a minha frente. Nem a meu lado.
Bem, a meu lado, sim, mas de costas voltadas.
Uma senhora dirigiu esse cumprimento a um Victor Hugo.
Na mesa do lado, sentava-se um velho da minha idade, de cenho carregado, com farto bigode e brancas barbas crescidas, e um olhar perdido. Apoiava a face na mão esquerda e a fonte esquerda nos rijos dedos.
- Olá, Luís! - repetiu a cachopa.
- Não te lembras de mim?! - interrogou, com um tom de carinhosa censura.
O Hugo, o meu homónimo LUÍS, fitou-a com um ar de duplicada surpresa.
Ela fez um ligeiro desvio, e eu dei conta de ser uma mulher no fim da mocidade, já madura, no entanto, ainda elegante.
Reparei no suplicante olhar do Victor, o LUÍS, a rogar à memoria a misericórdia de lhe decifrar o retrato daquela mulher.
Diante do pasmo e do ar indiferente, do LUÍS, a moça, desenhando um sorriso a que o brilho do olhar deu mais encanto, lembrou-lhe:
- Sou a Margarida!
Victor Hugo, aliás, o meu vizinho LUÍS, olhou com mais atenção e pormenor.
E respondeu:
- A Margarida era linda! Muito linda! Muito bonita!
Era bela, quase sem o saber!
Vossemecê é … bonita.
- Podemos conversar um bocadinho? - perguntou, com um laivo de angústia na voz, a senhorita.
Fiz que mexia nas folhas do bloco de apontamentos, nas canetas, nos guardanapos de papel, no alinhamento dos óculos enquanto olhava de esguelha para ambos, o LUÍS vizinho e a «madame», e apurava o ouvido.
O Victor Hugo, aliás, o LUÍS, desceu a mão da queixada e desviou-a para uma cadeira: convidava a estranha senhora a sentar-se.
LUÍS sentiu um aperto no coração, já de si tão apertado com o desgosto de um adeus, no tempo e horas, já tão distantes, em que o trazia tão dilatado por um amor sincero, imenso, tão apaixonado.
Ela sentou-se. E logo do lado do coração do LUÍS.
- Foi no tempo das primeiras cerejas, lembras-te, Luís?!
Ao Victor Hugo tomou-o um certo desassossego.
A mim, as cerejas trouxeram-me à lembrança a alegria e a felicidade da minha meninice, lá, na minha GRANGINHA natal, e do grande trambolhão que eu, o Mário e o Júlio demos, montados numa enorme galha da cerdeira da TIA AUGUSTA do TIO QUIM, pais da Laurinda, para o quinteiro.
A TIA AUGUSTA do TIO QUIM disse-nos para «irmos às cerejas». Estavam lindas de morrer, quer-se dizer, ainda melhor, de comer!
Catrapumba!
E o trambolhão ficou eternamente lembrado!
LUÍS não se lembrava. Já tinha vivido muitos tempos de cerejas, mas, desde aquele desditoso adeus, deixou de contar e celebrar primaveras - no Outono da sua vida, só tem vivido dias e noites de Inverno!
No seu olhar, e nas rugas dos seus olhos, estão escritas essas palavras.
Num relance, pude ver de frente a Margarida.
Realmente, era … bonita. O desenho da sua boca fazia um lindo sublinhar do brilho dos seus olhos.
Disse para comigo:
- Deve ser uma boa pequena!
(*boa pequena* é uma maneira muito carinhosa de dizer bem, mesmo muito bem, de uma moça, rapariga ou mulher, lá, na minha terra natal. É um certificado de qualidade, mais válido do que os carimbados com selo branco! E eu aprecio «as falas» da minha terra!).
Ela pôs-lhe a mão no braço descansado na mesa. O do lado do coração.
Vi o Hugo, aliás o meu homónimo LUÍS, endireitar levemente as costas, levantar um tantinho a cabeça como que a procurar o calendário de uns dias de demorada aurora, e olhar com alguma vaguidade para a … bonita mulher.
Margarida, fitando-o com ternura, sorrindo com bondade, apertou-lhe o braço.
E disse:
- Foi no tempo das primeiras cerejas, Luís. E no tempo do nosso primeiro beijo!
Depois, comíamo-las da boca um do outro!
Senti que o LUÍS sentiu uma pontada no peito. Ali, do lado do coração.
Para lá levou a mão direita. Com ela acariciou a aba do casaco.
Verteu uma lágrima. Grossa.
Não foi a tempo de a limpar com a mão - caiu no tampo da mesa.
Procurou no bolso direito das calças o pacote de lenços de papel.
Gastou os lenços.
Não conseguiu enxugar os olhos!
M., catorze de Novembro de 2023
Luís Henrique Fernandes, da Granginha