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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

09
Dez23

Ocasionais

* boa pequena*


ocasionais

 

*boa pequena*

 

Absorvido pela leitura, e pela meditação em que ela me mergulha, não reparei nas pessoas que se sentaram às mesas próximas de mim.

 

Fui tomar o meu pingo da tarde a um novo CAFÈ, onde o ambiente consente a leitura sossegada, sem a perturbação de vozearia e das «carvalhadas e castanheiradas», que por aqui são a sonora e colorida exibição da personalidade e da esmerada «boa educação» da gente aprimoradamente culta, desta minha alargada vizinhança. 

 

- Olá, Luís!

 

Surpreendeu-me, quase como um susto, esta exclamação.

 

Levantei os olhos desde *Os Miseráveis*, mas não vi ninguém a minha frente. Nem a meu lado.

 

Bem, a meu lado, sim, mas de costas voltadas.

 

Uma senhora dirigiu esse cumprimento a um Victor Hugo.

 

Na mesa do lado, sentava-se um velho da minha idade, de cenho carregado, com farto bigode e brancas barbas crescidas, e um olhar perdido. Apoiava a face na mão esquerda e a fonte esquerda nos rijos dedos.

 

- Olá, Luís!  -   repetiu a cachopa.

 

- Não te lembras de mim?!  -   interrogou, com um tom de carinhosa censura.

 

O Hugo, o meu homónimo LUÍS, fitou-a com um ar de duplicada surpresa.

 

Ela fez um ligeiro desvio, e eu dei conta de ser uma mulher no fim da mocidade, já madura, no entanto, ainda elegante.

 

Reparei no suplicante olhar do Victor, o LUÍS, a rogar à memoria a misericórdia de lhe decifrar o retrato daquela mulher.

 

Diante do pasmo e do ar indiferente, do LUÍS, a moça, desenhando um sorriso a que o brilho do olhar deu mais encanto, lembrou-lhe:

 

- Sou a Margarida!

 

Victor Hugo, aliás, o meu vizinho LUÍS, olhou com mais atenção e pormenor.

 

E respondeu:

 

- A Margarida era linda! Muito linda! Muito bonita!

 

Era bela, quase sem o saber!

 

Vossemecê é … bonita.

 

- Podemos conversar um bocadinho?   -  perguntou, com um laivo de angústia na voz, a senhorita.

 

Fiz que mexia nas folhas do bloco de apontamentos, nas canetas, nos guardanapos de papel, no alinhamento dos óculos enquanto olhava de esguelha para ambos, o LUÍS vizinho e a «madame», e apurava o ouvido.

 

O Victor Hugo, aliás, o LUÍS, desceu a mão da queixada e desviou-a para uma cadeira: convidava a estranha senhora a sentar-se.

 

LUÍS sentiu um aperto no coração, já de si tão apertado com o desgosto de um adeus, no tempo e horas, já tão distantes, em que o trazia tão dilatado por um amor sincero, imenso, tão apaixonado.

 

Ela sentou-se. E logo do lado do coração do LUÍS.

 

- Foi no tempo das primeiras cerejas, lembras-te, Luís?!

 

Ao Victor Hugo tomou-o um certo desassossego.

 

A mim, as cerejas trouxeram-me à lembrança a alegria e a felicidade da minha meninice, lá, na minha GRANGINHA natal, e do grande trambolhão que eu, o Mário e o Júlio demos, montados numa enorme galha da cerdeira da TIA AUGUSTA do TIO QUIM, pais da Laurinda, para o quinteiro.

 

A TIA AUGUSTA do TIO QUIM disse-nos para «irmos às cerejas». Estavam lindas de morrer, quer-se dizer, ainda melhor, de comer!

 

Catrapumba!

 

E o trambolhão ficou eternamente lembrado!

 

LUÍS não se lembrava. Já tinha vivido muitos tempos de cerejas, mas, desde aquele desditoso adeus, deixou de contar e celebrar primaveras   -   no Outono da sua vida, só tem vivido dias e noites de Inverno!

 

No seu olhar, e nas rugas dos seus olhos, estão escritas essas palavras.

 

Num relance, pude ver de frente a Margarida.

 

Realmente, era … bonita. O desenho da sua boca fazia um lindo sublinhar do brilho dos seus olhos.

 

Disse para comigo:

 

- Deve ser uma boa pequena!

 

(*boa pequena* é uma maneira muito carinhosa de dizer bem, mesmo muito bem, de uma moça, rapariga ou mulher, lá, na minha terra natal. É um certificado de qualidade, mais válido do que os carimbados com selo branco! E eu aprecio «as falas» da minha terra!).

 

Ela pôs-lhe a mão no braço descansado na mesa. O do lado do coração.

 

Vi o Hugo, aliás o meu homónimo LUÍS, endireitar levemente as costas, levantar um tantinho a cabeça como que a procurar o calendário de uns dias de demorada aurora, e olhar com alguma vaguidade para a … bonita mulher.

 

Margarida, fitando-o com ternura, sorrindo com bondade, apertou-lhe o braço.

 

E disse:

 

- Foi no tempo das primeiras cerejas, Luís. E no tempo do nosso primeiro beijo!

 

Depois, comíamo-las da boca um do outro!

 

Senti que o LUÍS sentiu uma pontada no peito. Ali, do lado do coração.

 

Para lá levou a mão direita. Com ela acariciou a aba do casaco.

 

Verteu uma lágrima. Grossa.

 

Não foi a tempo de a limpar com a mão   -    caiu no tampo da mesa.

 

Procurou no bolso direito das calças o pacote de lenços de papel.

 

Gastou os lenços.

 

Não conseguiu enxugar os olhos!

 

M., catorze de Novembro de 2023

Luís Henrique Fernandes, da Granginha

 

 

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