Palavras colhidas do vento...

Poderia ser um rosto como de tantos outros com quem cruzamos durante o dia.
O que o torna particular ou diferente dos demais?
Conhecem aquela imagem, creio ser de Saul Steinberg, de um homem que, apesar do céu límpido ou ensolarado, traz sempre uma nuvem cinzenta a pairar sobre a cabeça, ameaçando chuva… pois é a ideia que dá. Pelo menos a mim, nos breves instantes em que olhei para ele.
Cumprimentamo-nos, esforça-se para desenhar um sorriso e cada um segue o seu caminho.
Quando o vejo à distância, mais que caminhar, parece transportar um peso enorme nos ombros descaídos e sempre com um olhar perdido sabe-se lá onde.
É jovem, não lhe daria mais de trinta e tal anos.
Conheço-o desde o dia que me pediu educadamente um cigarro e era tamanha a tristeza naquele pedir… que me embaraçou e não pude deixar de ficar intrigado.
A resposta demorou alguns dias e quando o encontrei, estava à porta da igreja a mendigar.
Nada que se pudesse suspeitar… pelas maneiras, aspecto ou trajar.
E mais uma vez… mais que pedir, olhava para as pessoas que entram na igreja para assistir à missa ou esta terminada, saem, quando elas fazem o gesto de procurar alguma moeda nas algibeiras ou na mala de mão é que ele estende a mão e num murmúrio agradece…
Já o (…) é um caso à parte.
E como dizem algumas das pessoas a quem ostensivamente estende a mão: “Sabe-a toda…!”
Ele próprio afirma que é pedinte encartado e com a contabilidade organizada e só não passa recibos, porque o contabilista é preguiçoso e ainda não lhe fez as contas do mês anterior.
Há quem goste dele e quem não gosta e contam-se histórias acerca de seu património… que é rico… de boas famílias e até um rebanho tem ao ganho… rumor último que confirma, dizendo que deixou “uma ovelha presa por trás da Câmara de Vila Pouca”.
Tem o “escritório” em lugares estratégicos da cidade, de acordo com o Seringador ou Borda d`Água pessoal, e num desse locais, cidadão prestimoso e responsável, até orienta o tráfego automóvel, como faz questão de salientar.
É raro, um turista não contribuir com o seu óbolo para o orçamento deste empreendedor de actividade não especificada, que fala várias línguas; nada estranho… tendo em conta à formação superior que dá mostras e aos estágios feitos noutros países.
Como no Verão, durante alguns meses não fosse visto na cidade ou redondezas, quando regressou, perguntaram-lhe a razão da ausência. Respondeu que, fizera “praia… na Póvoa”.
Uma das leituras de minha referência é a vida de “Lazarillo de Tormes e das suas felicidades e desventuras”. É uma obra do séc XVI e não vou alongar-me em comentários e sim aconselhar a leitura. É um género que aprecio… a picaresca peninsular. E é nessa perspectiva que se insere a facécia que segue. O protagonista tem nome e apodo, que não vou mencionar. Numa conversa de dia seguinte, o nosso amigo tinha feito tantas viagens ao estrangeiro em simultâneo no dia anterior, que os interlocutores, já acostumados e congraçados com a sua desbragada imaginação, lhe perguntaram por troça se não ficara cansado de tantas viagens.
Ao que ele retorquiu: - “Às viagens… não, agora à azáfama dos aeroportos…”
Mário Esteves


