Quem conta um ponto...
358 - Pérolas e diamantes: O azul, o medo, a engorda e a angústia de dormir para ser brevemente acordado
Aprendi com a Moira, uma bela personagem do romance A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, de José Eduardo Agualusa, que os antigos gregos, tal como os chineses ou os hebreus, não possuíam uma palavra destinada a nomear o azul. Para todos eles o mar era verde, acastanhado ou cor de vinho. Por vezes negro.
Na pintura ocidental o mar apenas começa a ser pintado de azul no século XV. Também o céu não era azul. Os poetas designavam-no como rosado, quando amanhecia; incendiado quando se punha; ou leitoso, nas tristonhas manhãs de inverno.
Afinal são os nomes que dão existência às coisas. “No princípio era a palavra…”
Ai que sono…
Ainda hoje me delicio com o pensamento do primeiro pintor, em plena Idade Média, a escolher o tom de azul para colorir o mar. Momentos antes de existir a cor azul. O que seria de mim sem o azul.
Mas não é disto que eu quero falar hoje. Desta vez pretendo dar-vos conta da entrevista que Ricardo Sá Fernandes concedeu ao Expresso, advogado que mesmo não sendo melómano prepara os seus processos a ouvir ópera antes de ir para a barra do tribunal.
Dói-me a cabeça. Tenho de dormir…
Na Justiça, diz ele, 80% das decisões são com certeza justas e equilibradas. No entanto a margem de erro é muito grande. Ninguém se mete a jogar a roleta russa com a probabilidade de 1/5 em ser liquidado.
Claro que a morosidade é um problema, mas para Sá Fernandes a incerteza da Justiça é que é de temer. Além disso, a Justiça erra vezes demais. Todos podemos, lembra ele, ser enganados por uma testemunha que minta bem. E depois, a preguiça, ajuda muito nas decisões erradas, “porque a decisão formal é sempre a mais fácil”.
Além disso, as magistraturas e a advocacia são constituídas por “gente que não gosta de ser escrutinada”. E porquê? Na opinião do advogado, “os portugueses são pouco exigentes com o escrutínio”.
Dói-me a cabeça…
Além disso, afirma o causídico que já foi secretário de Estado, “o português às vezes é muito corajoso, mas por regra é manhoso”. E depois realça o modelo: “Acho que o exemplo que melhor ilustra o que é ser português é o rei D. João VI, que foi um rei que acabou por ter resultados ótimos. Fugiu para o Brasil, garantiu-nos a independência, andou a enganar os franceses e os ingleses. Foi manhoso. Isto é uma caraterística que reflete uma cultura de medo e de falta de frontalidade.”
Ricardo Sá Fernandes disse uma vez que os tribunais são casas de mentira. Desta vez, não só corroborou a ideia, como carregou nas tintas: “Não há sítio onde se minta tanto como nos tribunais.”
Quero dormir… já não aguento estar acordado… tanto tempo…
Pergunta da jornalista: “Quem mente, as testemunhas, os arguidos, os advogados, os juízes?” Resposta do entrevistado: “Todos. Todos mentem, mas é verdade que a maior responsabilidade é a das testemunhas porque elas é que têm de depor sobre os factos. E nós também somos pouco rigorosos a punir os que mentem nos julgamentos.”
Apesar de tudo é um homem de fé. De muita fé, atrevo-me mesmo a dizer. Pois além de cristão, é maçom e socialista.
Mas eu tenho tanto sono… Será que tenho de acordar mesmo antes de adormecer?
Mas Ricardo Sá Fernandes pontualiza, esclarece e declara: “Sou cristão. Revejo-me na Inquisição? Não. Sou maçom. Revejo-me nestas negociatas que há nas lojas? Não. E nos compadrios também não.”
Eu, cá de longe, com vossa licença, atrevo-me a concluir o raciocínio: Também é socialista, mas não se revê no Partido.
Tenho de me manter acordado, não vá o Diabo tecê-las…
Oiçamos o senhor: “O PS, o PSD e o CDS incentivaram em Portugal uma cultura de favores, de nepotismo. Estou ideologicamente próximo do Partido Socialista, mas tem uma prática politica absolutamente inaceitável, de favores, de complacência, com compadrios e situações pouco claras.”
A preocupação está lá: “Sinto-me um cidadão que faz tudo para não agir sob o efeito do medo, mas que também tem medo.”
Medo de acordar? Medo de dormir? Medo de dormir acordado? Medo de acordar a meio do sonho?
Quando está cansado procura o contacto com a natureza em Trás-os-Montes, onde tem a sua casa-refúgio. Em Oura faz vinho, lê livros, passeia e anda de bicicleta.
Jesus, no sermão da Montanha, diz mais ou menos isto: “A razão do homem erra, mas há um que faz todas as coisas bem. Sempre, ao longo da viagem da vida, segue este preceito: «Faz aos outros aquilo que gostarias que te fizessem a ti».”
Mas também há um ditado popular que diz: “Tudo o que não mata engorda.”
Peço desculpa, mas agora vou dormir. É que estou a morrer de sono, depois de tanto tempo acordado. A dor de cabeça é enorme. Eu quero é dormir. Dormir profundamente. A dor de cabeça é enorme.
Aspirinas há muitas, seus amáveis palermas.
João Madureira