Quem conta um ponto...
423 - Pérolas e Diamantes: A indignação lírica
Os tempos não estão para brincadeiras. Os olhos dos vingativos, dos ressentidos, dos perseguidores, brilham agora como lâminas.
As pessoas comuns tornaram-se assustadiças e entorpecidas. Já não sabemos se ainda é possível confiarmos uns nos outros, seja para o que for.
Uma coisa, pelo menos, aprendi com James Baldwin: Não é o amor nem o terror o que nos torna cegos, é a indiferença. E, como diz o povo, não existe pior cego do que aquele que não quer ver.
Em 1971, o Partido Comunista Chinês proclamou oficialmente que “fazer amor é uma doença mental que desperdiça tempo e energia”.
O que gostava mesmo era de fazer ioga sentado no chão em busca de paz interior, com os braços e as pernas ondulando suavemente no ar imóvel. Ou passar o resto da manhã a ler. Mas a minha coluna não deixa e a minha profissão chama-me.
Olho lá para fora e o sol já está no zénite, envolvendo o mundo. Penso que tudo o que uma pessoa ama está sempre em risco.
Há pessoas com quem é fácil conversar, mas sentem-se rapidamente os limites. Todas elas parecem interessar-se pelo mesmo tipo de livro.
No fundo, as histórias são como a roupa que temos no guarda-fatos, temos de as vestir se as quisermos compreender.
Há histórias verdadeiras que não me saem da cabeça. Por exemplo, a da poetisa russa Akhmatova, cujo marido foi executado pelos comunistas e o filho passou anos num campo prisional. Ela vivia num quarto vigiada pela polícia secreta, sempre com medo de ser presa. Costumava receber a visita de amigos com quem falava sobre assuntos para despistar os polícias à escuta. Akhmatova mostrava-lhes numa mortalha de cigarro os versos de um poema que tinha escrito para que eles o lessem e decorassem. Quando os amigos lhe faziam sinal acendia um fósforo e pegava fogo à mortalha.
James Salter conta que quando vamos a casa de um russo e nos sentamos com ele, normalmente na cozinha, mesmo que seja só para um chá, ele dá-nos a sua alma.
Penso no início de um novo romance em que dois anjos, um verdadeiro e um falso, param junto de uma orquestra num baile de máscaras e põem-se a fumar cigarros. Ir falar com eles talvez seja uma atitude imprudente, no entanto o Luís decidiu cinco vezes que não. E outras tantas que sim. No fim, resolveu outra coisa e foi passear por entre sultões e Cleópatras. Passou uma noite fantástica a vaguear. Sexo nem vê-lo. Andava teimosamente de olhos vendados.
Então não é que estamos ricos!
Já podemos dispensar a pesquisa de petróleo e mesmo deixar que os portos encerrem portas para impedir as nossas exportações de qualidade. Até já nos damos ao luxo de que as estradas desapareçam sem que nos apercebamos. Entretanto, a esquerda preocupa-se com o IVA das touradas em vez de se preocupar com o preço do bife do lombo. Esse é o seu sentido apurado de classe. A política já não faz apenas de conta. É mesmo uma fraude. Até as causas ambientais deixaram de ser fraturantes para passarem a ser filantrópicas.
Uma coisa eu sei, neste tempo de emparelhamentos conjunturais, a amizade contribui para a produtividade.
Nossa Senhora de Fátima consegue, todos os dias treze, transformar os nossos resultados medíocres em grandes sucessos. A economia é uma coisa de fé.
A nós sempre nos faltaram os coletes amarelos. Não é que nos falte energia. Não, isso não. O que nos subtraíram foi o descodificador para podermos optar entre a fatura fixa ou variável da eletricidade.
Afinal, quem é que capitaliza as nossas linhas de crédito?
Uma coisa vamos resolver de certeza: as touradas. Os queridos camaradas socialistas propõem que elas sejam realizadas sem sangue e com velcro. O poeta Manuel Alegre até acha a ideia interessante. Os acagaçados aficionados politicamente corretos acham bem e até os dirigentes do PAN admitem que essa pode ser a solução.
Mas, ironia à parte, uma coisa me deixa muito próximo de acreditar no futuro de Portugal. O BE. O partido de Catarina Martins, segundo o “Expresso”, dá lucro e não tem dívidas à banca. E até o leasing dos carros já pagou.
O inverno deixa a minha cidade triste. Pelo menos é o que me parece. A cidade perdeu voz. O seu silêncio traz-me lágrimas aos olhos. Penso que é da idade.
Não podemos esperar que aqueles que desfeiteamos nos venham agradecer.
Provavelmente estou enganado. E eu já me enganei tantas vezes! A água do rio continua a correr. Oiço o rumor das árvores. Gosto de acordar com a luz da manhã a refletir-se nas delicadas cortinas de renda. Por vezes, o silêncio pode ser inquietante.
Tão inquietante como o facto de sermos a única civilização que paga a especialistas para ouvirmos confidências sobre o (nosso) sexo.
Passamos do confessionário ao divã, pensando que isso é o progresso. É difícil libertarmo-nos do conceito de pecado.
Como escreveu Foucault: “É bem verdade que os bons governos gostam da salutar indignação dos governados, conquanto ela se mantenha lírica”.
Feliz 2019.
João Madureira