Quem conta um ponto...
Céu muito nublado
– Não vás com tanta velocidade.
– Achas que sou oligofrénico?
– Não. Nem por isso. Mas o que é que tem isso a ver com a velocidade?
– Tudo tem a ver com tudo.
– Não sei se és oligofrénico ou não. Tenho a certeza é que aceleras muito dentro das cidades.
– Só dentro das cidades?
– E fora delas. Tu aceleras em qualquer lado.
– Mas achas mesmo que sou oligofrénico?
– O que tu és é maluco.
– Então achas que sou mesmo oligofrénico.
– O que tu és é um chato.
– Modera-te. Oligofrénico sim, chato nunca.
– Que nuvens tão escuras.
– Não disfarces.
– Vem aí uma trovoada das grandes.
– Não desvies a conversa.
– Deixei a roupa a secar na varanda e vai molhar-se toda.
– Eu preocupado com a minha oligofrenia e tu pensas só na tua roupa! És uma ingrata.
– A roupa também é tua e dos garotos. E a ingratidão tem as costas largas.
– Tens razão, as nuvens são mesmo ameaçadoras.
– Eu não te disse?
– Achas que sou mesmo oligofrénico?
– Não, não acho. O Mundo é que não te compreende.
– Assim está melhor. Mas não dizes isso só para me agradar, pois não?
– Não.
– Não?
– Não.
– Escusas de ser tão evasiva.
– Eu não sou evasiva, sou sincera e curta de palavras.
– Então achas que não sou oligofrénico? Não dizes nada?
– Vai mais devagar que isso passa. Temos muito tempo para chegar.
– Mas não disseste que querias chegar a casa rapidamente para apanhares a roupa que se pode molhar?
– Que se lixe a roupa. Eu quero é chegar a casa tranquila e inteira.
– Achas que sou oligofrénico? Achas ou não? Diz a verdade.
– …
– Está bem, eu vou reduzir a velocidade. Começou a chover. Eu gosto da chuva. E tu?
– Olha, liga o rádio.
– O teu basta.
– Achas que sou oligofrénico?
– I’m singing in the rain…
Ali e a semiótica
O meu amigo Mário revelou-me que anda triste porque agora já não consegue encontrar indivíduos. Confesso-vos que não percebi bem o queixume. Eu sou mais terra a terra. Ele é que gosta de pensar sobre o que os outros pensam ou não pensam, sobre o que significam determinadas palavras fora do contexto ou dentro dele, de refletir sobre a arbitrariedade das ideologias totalitárias ou sobre a indiferenciação ideológica e política que atravessamos. Fora isso, é até bom rapaz, um eficaz chefe de família, um atinado adepto do F. C. Porto e um rigoroso praticante de desporto, nomeadamente das corridas de karting. Na segunda-feira passada abandonou na mesa do café os seus amigos mais chegados. E isto porque, segundo o próprio, sendo todos de orientação política, futebolística e religiosa diferente, agora estão sempre de acordo. Parecem parvos, diz ele para quem o quer ouvir. Atualmente dizem e defendem todos o mesmo. E repete muitas vezes a frase: “Cada vez existem mais pessoas com as mesmas ideias.” E isso é assustador. Eu também acho que é. Mas penso que não é motivo suficiente para abandonar a mesa das suas amizades. Mesa que frequentou e animou durante 20 longos anos. Foi ali que debateu a questão da semiótica do marxismo, a tática e estratégia da guerra do Iraque na perspetiva de um chinês xintoísta, a liberdade aparente dos ricos, a penúria simbólica dos deputados europeus, a ontologia das operações matemáticas, a liberdade sexual em contexto cibernético, o direito internacional dos cães de caça, a influência da cor dos olhos na reprodução assistida, a importância da linguagem no crescimento dos antúrios e por aí fora, passando pela requalificação da Galinheira, o simbolismo da curva do Caneiro, a inteligência sofisticada dos embriões dos caracóis e o egocentrismo das estrelas-do-mar. A mãe do Mário disse-me que o filho falou na sua barriga, quando andava grávida de sete meses. Por isso ele é tão predestinado.
Epístola segunda
Escrevo-te ainda de C. Por aqui continuo a gastar os meus parcos rendimentos mas faço-o cada vez mais com redobrado prazer. O prazer de gastar, de nada deixar a ninguém, nem sequer à Misericórdia, nem a nenhuma outra instituição, seja ela de caridade, cultural, cívica, militar ou protetora dos animais e afins. Por cá a gente atrapalha-se nas ruas. São tantos os que por aqui andam de um lado para o outro que parece que o ar para respirar nos falta. Este formigueiro em constante movimento por vezes põe-me louco. Como louco fiquei quando soube que o canguru que deixei à tua guarda desapareceu na noite. É que eu tinha uma consideração peculiar pelo animal. Além de ser de estimação, era um ser estranho, mas profundo. Eu costumava falar muito com ele. E ele ouvia-me com muita atenção, interesse e bonomia. Interlocutor assim nem mesmo tu o consegues ser. Digo-te que ando um pouco desconfiado que foste tu quem o deixou fugir. Bem, fugir não, pois o animal não era de fugidas. Estava muito habituado à minha casa. Andava pelo jardim com muito estilo, cantava lindas canções de embalar que ouvia à governanta, assobiava com bastante intensidade e tocava muito bem o tambor. Por vezes até tratava da horta e tinha um carinho especial pelo talhão dos tomates e das cebolas. Desconfio que o expulsaste de casa ou o vendeste ao circo. Se tal fizeste juro que to farei pagar em duplicado, pois sou muito bem capaz de te esganar a catatua que te trouxeram do Brasil e depois assá-la e comê-la na companhia do meu cão de caça. Que te desfizesses do esquilo esquizofrénico ainda vá que não vá, agora expulsares-me o canguru da quinta ou vendê-lo ao circo, isso é uma afronta muito séria à minha pessoa e à nossa profunda amizade. E sabes bem que uma amizade pode resistir a tudo menos aos golpes baixos e aos ciúmes. Como me dói muito a cabeça, vou-me até ali à farmácia comprar umas aspirinas. Despeço-me até à próxima, enquanto aguardo que me restituas o canguru, senão vai ser o cabo dos trabalhos para nos tornarmos a dar como irmãos. Que é aquilo que somos na realidade. Envio-te este postal com um pedido de desculpas, é que no quiosque não havia outro e este é um pouco enigmático, mas nalguma coisa tinha de escrever. PS - Peço-te encarecidamente que continues a dar de comer e beber aos meus queridos animais. Especialmente à serpente coral do Texas (Micrurus tener).
João Madureira