Quem conta um ponto...
521 - Pérolas e Diamantes: Entre Godot e Pitágoras
Há um provérbio russo, muito acertado, que diz mais ou menos o seguinte: só se vive de verdade o tempo que se dedica à amizade.
E depois existem as memórias. Muitas das minhas têm a ver com alguns dias de doença que me levavam à cama onde passava as manhãs a ler livros aos quadradinhos e depois a beberricar a canja de galinha. E também ouvia rádio. Ouvir rádio, nos meus tempos de criança, era outra alegria. A telefonia era aquilo que nos ligava ao mundo. Televisão quase não existia. E os jornais eram escassos.
E também se rezava muito, talvez demasiado. Mas Deus, para mim, sempre permaneceu em silêncio. Apesar das muitas tentativas que eu fiz para estabelecermos um diálogo, por pequenino que fosse. Um “olá” chegava.
Também me lembro de nos abrigarmos no recreio da escola quando chovia ou nevava. Era normal enviarmos bilhetes às meninas. Nós gostávamos das raparigas. O professor, e a minha mãe, insistiam na tabuada.
E havia alguns filmes no cinema onde nos era permitido ir. Lembro-me de chorar com o lançamento do cadáver amortalhado de Simão Botelho ao mar e com o assassinato da mãe do Bambi.
Sim, gostava de raparigas, da sua companhia, das suas gargalhadas e, sobretudo, da sua anatomia. E acreditava no amor de perdição.
Quando cheguei a Chaves era um rapaz desengraçado e com pouca piada. E assim me fui mantendo, não fosse o Diabo tecê-las. Sentia-me uma espécie de mágico falhado. Ainda hoje me sinto tal e qual.
Vim dos invernos nevosos para os invernos nervosos.
Por essa altura, as hormonas começaram a saltar e entrei diretamente no Teatro do Absurdo.
Com quinze anos comecei a namorar, a ir ao cinema, a beber refrigerantes e a fumar um que outro paivante.
Comecei a ler o D. Quixote, coisa que ainda faço com regularidade, e a ver os filmes de Chaplin, que sempre considerei mais divertido do que Keaton ou Harold Lloyd. E, por incrível que pareça, nunca me ri com Laurel & Hardy. Mas sempre fui fã dos irmãos Marx, preferindo Harpo a Grouxo. Penso que essa foi a minha primeira dissidência marxista.
A verdade é que cada um tem as dissidências que merece.
Até me cheguei a entusiasmar com os cobóis, mas nunca consegui odiar os índios e tive sempre um horror visceral em relação a armas de fogo.
Comecei então a brincar um pouco com a escrita. Mas os primeiros esforços foram ou quase cómicos ou profundamente ridículos.
Por essa altura ainda andava à procura de Deus num universo imenso e sem sentido e num mundo onde a guerra era o pão nosso de cada dia. A guerra colonial estava no auge.
E via os filmes de Fred Astaire pensando que eram documentários sobre a incrível arte da dança protagonizados por um lingrinhas que nunca se cansava de dar às pernas.
Um pouco mais tarde consegui assistir aos ensaios de um grupo de teatro, do qual queria fazer parte, esperançado que um tal de Godot finalmente chegasse. Ainda hoje continuo à sua espera.
Enquanto esperava, comecei a ler e a estudar. Tornei-me amigo e seguidor de Pitágoras. Fascinou-me o seu pensamento de que a unidade simples é a base de todas as coisas, pois é dessa unidade que deriva o número. Dos números, derivam os pontos. Dos pontos, derivam as linhas que unem dois pontos. Dessas linhas derivam os planos e deles derivam os sólidos. E dos sólidos derivam os quatro elementos: fogo, água, terra e o ar. Foi da combinação desses elementos que se formou o Universo, que é vivo e está em constante mutação. Universo que é uma espécie de esfera que contém no seu centro uma esfera mais pequenina, a Terra.
Lembrei-me então da minha dedicação infantil pelo jogo do berlinde, do botão e do pião.
Pitágoras acreditava que, de todos os sólidos, a esfera é o mais belo e que de todas as figuras planas, a mais sagrada é o círculo, dado que todos os pontos estão ligados entre si e não têm começo nem fim.
Seguiu-se Marx e a ilusão revolucionária. Senti-me nela como um condutor que descobre que o carro que quer guiar se movimenta sozinho, arrancando e parando quando lhe apetece.
A verdade é que não interessa o lugar de onde se parte mas aquilo que se aprende pelo caminho.
Já chegar ao destino é outra conversa.
João Madureira