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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

18
Jul22

Quem conta um ponto...


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598 - Pérolas e Diamantes: Claustrofobia

 

É incrível a maneira como a claustrofobia nos corta a respiração. Costumo sentir-me fechado no meio das pessoas que teimam em lançar o pandemónio no mundo que nos rodeia. Já não nos atrai o íman da simpatia das pequenas coisas. E as pessoas, mesmo as mais queridas, com o tempo vão desaparecendo aos poucos rumo à sombra da memória do passado. Nunca sabemos ao certo a força que nos empurra escadas abaixo ou aquela que nos salva num momento de aflição. Todo o movimento regressivo é um processo proustiano. O mundo não é o que parece. Provavelmente, não adianta ter princípios. Remar contra a maré nunca é a boa direção. Os centros de interesse resvalam todos para a superficialidade. E o que é que isso tem de mal? Os espíritos benéficos estão espalhados por toda a parte. Quando uma aventura acaba, outra se lhe sucede de imediato. Viva a república e o fogo fátuo. A vida é um fandango. Apesar de não gostarmos uns dos outros, lá vamos sorrindo para quem sorri para nós. Os mais afoitos sentem-se bem a agitar os braços e a arregalar os olhos mesmo quando falam das coisas mais comezinhas. Parecem o presidente Marcelo.

 

Há coisas que nos acompanham toda a vida. Alguma coisa me ficou da leitura dos contos de O. Henry, sobretudo a sua técnica do suspense e de arranjar sempre um final desnorteante. Foi muitas coisas na vida e até esteve preso durante três anos por ter desviado dinheiro. Depois de libertado, começou a colaborar com um jornal americano, escrevendo um conto por semana. Os patrões da publicação, porque eram homens de negócio, resolveram pagar-lhe à palavra. Todos nós sabemos como são usurários os patrões americanos. Ele aceitou, que remédio. Mas, nas semanas seguintes, todas as personagens passaram a ser gagas. Os patrões, como além de usurários, também eram inteligentes, não discutiram a nova situação e cederam.

 

Van Gogh vendeu apenas um quadro em toda a sua vida. Dizem que foi por admiração, ou por pena, que a irmã de um seu amigo lhe pagou quatrocentos francos por uma pintura a óleo, A Vinha Vermelha, pintada em Arles. Passado mais de um século, as suas obras são notícia nas páginas financeiras dos maiores jornais do mundo. As suas pinturas são das mais cotadas nas melhores galerias de arte. E as mais vistas nos museus. E as mais admiradas em academias que o aconselharam a dedicar-se a outra coisa.

 

Foi por coisas como estas que Edvard Munch pintou O Grito, pois, muito provavelmente, ouviu Van Gogh a gritar no céu, durante o crepúsculo, enquanto o sol persistia, em línguas de fogo que subiam no horizonte.

 

Eduardo Galeano diz que a fundação da publicidade foi feita pelo médico russo Ivan Pavlov, quando descobriu os reflexos condicionados, um processo de estímulos e de respostas a que ele chamou “aprendizagem”. Eis o processo: uma sineta toca, o cão recebe comida e segrega saliva. Passadas algumas horas, a sineta volta a tocar, o cão recebe comida e segrega saliva. No dia seguinte, a sineta toca, o cão recebe comida e volta a segregar saliva. E a operação volta a repetir-se hora após hora, dia após dia, até ao momento da sineta tocar e o cão não receber comida, mas segregar saliva. Depois de alguns dias passados, o cão continua a segregar saliva quando ouve a sineta tocar, apesar do prato estar vazio.

 

Aos trinta e dois anos, e ainda inexplicavelmente vivo depois de muitos desastres voadores, o brasileiro Alberto Santos Dumont recebe o título de Cavalheiro da Legião de Honra de França. Aos trinta e três torna-se o pai do avião moderno, um pássaro a motor que descola sem catapulta e se eleva e voa a seis metros do chão. Ao aterrar diz que tem a maior confiança no futuro do aeroplano. Pouco depois da Primeira Guerra Mundial, já com quarenta e nove anos, avisa a Liga das Nações de que “as proezas das máquinas aéreas permitem-nos entrever, horrorizados, o grande poder de destruição que elas poderão atingir como semeadoras da morte, não só entre as forças combatentes mas também, infelizmente, entre as pessoas indefesas”. Quatro anos depois diz que não vê razão para não se “proibirem os aeroplanos de atirarem explosivos, quando se proíbe deitar veneno na água”. Com cinquenta e nove anos interroga-se: “Porque terei inventado isto que, em vez de facilitar o amor, se transforma numa maldita arma de guerra.” E enforca-se.

 

Kafka, depois de escrever livros que ninguém lia, já no fim, com os olhos febris, num corpo que já não fazia sombra, rabiscou algumas palavras e, na sua dolorosa agonia e no meio do seu doloroso silêncio, só falou para pedir ao médico: “Se não é um assassino, mate-me.”

 

João Madureira

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