Quem conta um ponto...
636 - Pérolas e Diamantes: O cágado e os dogmas
Alguém perguntou a outro alguém: “Lembras-te de alguma vez agradeceres à tua mãe o que ela fez por ti?” Então lembrei-me que a minha mãe, a Dona Feliciana, foi uma criada, uma máquina de cozinha, sempre a lavar e a passar a roupa, a trabalhar a horta, a alimentar a criação, a amamentar os filhos, a dar-lhes banho, sem manifestações de dor, apesar de sofrer de enxaquecas e de desilusão crónica. Não sei a que propósito me dá agora para as recordações, as evocações e outras pieguices. Revisito os velhos tempos como quem folheia calmamente um álbum de fotografias e depois lá arranjo tempo e coragem para escrever essas impressões para as pessoas de confiança. Há gente que se deixa matar por apego à vida. Há lá maior paradoxo? Uma pessoa não pode viver a esconder a toda a hora aquilo que é. A andar pelo bairro com cautelas de homem perseguido. Alea jacta est. Será que o sofrimento tem prazo de validade? Quando o pai morreu, pensei: Poderá o sofrimento alguma vez ser diferente? Quando a mãe morreu, pensei: Poderá o sofrimento alguma vez ser diferente? Ainda hoje, passados estes anos todos, não consigo responder a esse sentimento. E, muito provavelmente, nunca vou ter a coragem suficiente para dar a resposta conveniente. Eu bem não queria, mas tudo o que digo e escrevo, gira em torno dessas perdas, dessa mesma situação de tristeza. Será que esta situação tem saída? Provavelmente sim, mas não a consigo encontrar. Eu continuo a lutar entre a crença religiosa e o ceticismo. Mas a racionalidade não precisa de lutar muito contra o fracasso religioso. Sempre pensei na beleza. A beleza, para mim, teve sempre um valor moral. Eu que pensava ser um revolucionário segmentado, não passo, pobre de mim, de um conservador temperamental. Sempre andei à procura da beleza, qual Santo Graal, e, em todos os caminhos que percorri, mais não fiz do que puxar e empurrar a moral. Mas, como disse, e para mal dos meus pecados, entre crenças e afrontas, descobri que culturalmente sou um conservador, pois valorizo, sobretudo, a sabedoria dos tempos. Mas, por outro lado, também me sinto um pouco anarquista, pois não existe arte fora da correlação entre criatividade e transgressão. Mas não se consegue transgredir conscientemente aquilo que se desconhece. Os falsos conservadores apostam na apostasia da justiça e da misericórdia, utilizando as armas da injustiça e da inclemência. Tudo o que é moralmente óbvio parte da arrogância da arte aborrecida, do dogma. O esplendor acaba quase sempre em tragédia. E isso é trágico. Há pessoas que escrevem, e descrevem, as suas obsessões como se fossem coisas arrebatadoras. Mas, na verdade, limitam-se a reproduzir os ecos das obsessões dos seus ídolos. A arte pode não ser a verdade, mas é muito menos a soma estilística de pequenas mentiras. A dor não é apenas uma coisa de fêmeas sensíveis, mas também de machos nostálgicos e abnóxios. Peguei no marxismo como teologia e isso só podia resultar mal. Pensei que juntar dogmas podia ser reconfortante. Mas descobri, entretanto, que não existem respostas para tudo. Deixei-me de defesas apaixonadas para me dedicar a escrever postais ilustrados aos amigos. E, quando acordei do sonho, apercebi-me que este mundo já era outro mundo. E continuo sem saber se eu caibo lá. Todas as coisas mudam menos do que parece. A toada das aparências até pode ser doce, mas os assuntos abordados tem um sabor amargo. Mas há gostos para tudo. As identidades fazem-se e desfazem-se ao sabor das hipóteses. Não vale a pena dedilhar o sacrifício como se ele fosse uma canção gemebunda. Quando lhe dão o rebuçado, o intelectual sofrido e ressabiado, sorri de satisfação como se o osso tivesse algo mais do que o tegumento. Quando o osso tem carne, o cão desconfia. A comédia da dor era, afinal, um embuste. Até a gaguez do escritor quase gago desaparece, os coitos passam de interrompidos a sibilantes, e a reza futebolística deixa de ser feita de joelhos para passar a ser realizada em pé e incluir uns patins em linha. O intelectual erectus, afinal, era um cágado a necessitar de ser engraxado.
João Madureira