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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

19
Jun23

Quem conta um ponto...


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639 - Pérolas e Diamantes: Ai este país...

 

Ai este país onde as pessoas costumam, e apreciam, viver em cozinhas cheias de fumo e de cheiro a comida, a castanhas, a sardinhas e a febras assadas, onde à noite os compadres se reúnem para jogar a bisca e beber copos de tinto, ou minis. Onde as mulheres, junto à lareira, fazem croché e vão, à vez, aquecendo as nádegas roliças. Noite alta vão para a cama dormir como selvagens, entre roncos e ventosidades. Sempre foi difícil ensinar-lhes hábitos, boas maneiras e moral. Tudo se agita e serena depressa. Ai este povo que gosta de pastéis de nata e laranjada e que aprecia o queijo com forma de bola vermelha. Este povo é estoico, à sua maneira, porque aguenta o suplício com muito orgulho, que é toda a coragem de que dispõe. Este é o país das feiras antigas, onde as pessoas passeavam pelas barracas, onde os ciganos incitavam com os calcanhares os potros que pretendiam vender, onde os lavradores faziam os seus negócios, onde havia dentistas que apregoavam a sua arte, chamando o poviléu. Perto dos talhos sentia-se o cheiro a carne fresca, enquanto o vento levantava pó, cobrindo as árvores, as pessoas e os objetos para venda. Ali perto passavam camionetas lotadas até ao tejadilho. As mulheres e as crianças rodavam pelo meio das tendas com regueifas e bolos sortidos e bonecos de pão e depois iam até ao mercado do barro onde se punham a admirar as filarmónicas azuis com os músicos de bochechas cheias soprando os instrumentos, repletos de entusiasmo. Ali ao lado estavam os galos brigões, como a fazer-lhes guarda. Os homens brandiam as varas e as bengalas, encostados às tábuas das tabernas onde bebiam copos de vinho e comiam polvo à galega. E fumavam cigarros amortalhados feitos à pressa. Este povo sereno não tem nada de ameno. Vive apenas dentro da sua própria confusão. Os velhos rezam, como sempre rezaram, fazendo ressoar as suas orações sob a abóbada das igrejas, onde homens habilidosos pintaram os santos da sua devoção. Provavelmente o Céu também é sofrimento. Uma combinação delicada de dietas, jejuns e cuidados paliativos. Além disso, as nossas pietás não têm convicção. Os que vivem na montanha veem correr as nuvens, as cabras a saltar nos montes, as ovelhas a pastar acompanhadas da sua mansidão e as árvores de fruto a florir. Os que vivem na cidade contemplam o mundo rural como se a sua beleza fosse plástica, como se de algo triste se tratasse. Como uma espécie de lentidão perdida. Parece sempre que estão num ensaio teatral onde cada um dos figurantes improvisa o seu papel. E o préstito de gatos-pingados e herdeiros desencontrados lá vai fazendo pela tradição. As visitas íntimas fazem-se pela porta dos fundos, que tanto dá para esta rua, como para a rua oposta. Dói muito ver as nossas crianças de olhos parados e com receio de falar. Já os seus pais adquiriram um olhar hermético que pretende esconder uma espécie de vingança secular, um ódio furtivo, que é dirigido a todos, mas a ninguém em particular. Quem não sabe quem amar, anda sempre a namoriscar. Até a nossa insolência é pacífica, vulgar. Há lá povo mais gaiteiro! Apesar da nossa superficialidade, ou talvez por isso mesmo, somos farsantes meticulosos. A maioria dos homens são fúteis e putanheiros e as mulheres adivinhadoras, sofredoras, apaixonadas. Os homens são relativos e as mulheres superlativas. Quase todos viemos das montanhas migadas de pedras, das hortas em canteiros, dos casebres em colmo a tresandar a fumo, ranço e mofo. Nascemos com o destino limitado. A nossa glória foi sempre a dos mares e a da miséria. Até nas paixões somos frouxos. Por nós não vem mal ao mundo. Nem mal, nem bem. A verdade é que por cá já não existem cavalheiros. Ninguém sabe beijar a mão de uma senhora nem rezar o ato de contrição ou qualquer outras das orações poderosas. É tudo ave-marias e pais-nossos. As regras da boa educação parecem costumes estranhos. Dizem os mais velhos dos velhos, e eu estou em crer, que esta é uma terra de fábulas, porque aqui até se fazem falar os animais. E isso provoca uma emoção linda. Apesar da ignorância ser um património partilhado, aprendemos a respeitá-la pois fazemos gala com tudo aquilo que não sabemos. Há os que se embaraçam por serem ignorantes. Nós não. Era o que mais faltava. Nós, mesmo quando não sabemos, desenrascamo-nos. Nós não temos inimigos, porque os desprezamos. Mas também não temos amigos, porque nos desprezam. Nós não aplaudimos o filme que vemos, mas as legendas que vamos lendo. Nós somos o nevoeiro onde El-rei Dom Sebastião se esconde.

João Madureira

 

 

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