Quem conta um ponto...
Portanto
Hoje acordei tarde. Mas não era isso que eu tinha programado. Por isso estou um pouco chateado. Eu chateio-me por tudo e por nada. Tenho de reconhecer. Mas também gosto de cumprir com aquilo que programo. E se eu programei acordar hoje cedo tinha de acordar cedo. Só que acordei tarde. Não foi muito mais tarde do que aquilo que tinha programado, mas foi mais tarde e isso é que me está a incomodar. É que eu se programo uma coisa gosto de a cumprir à risca. Mesmo que isso pouco afecte a minha vida diária. Não gosto de me desleixar, nem nos horários. A culpa não foi do despertador, que é coisa que eu não uso. A culpa é minha. Eu se programo acordar a uma determinada hora, acordo a essa hora e mais nada. Eu sou assim. O que programo gosto de cumprir. E se eu programei acordar cedo, tinha de acordar cedo. E acordei tarde. Por isso estou chateado. Eu também me chateio por tudo e por nada. Mas como sou assim, não tenho desculpa. Não é que eu goste de me chatear. Acho mesmo que ninguém gosta. Mas aquilo que tem de ser tem muita força. E aquilo que uma pessoa decide tem também de ter muita força. Portanto, se eu programei acordar cedo tinha de acordar cedo. E mais nada. Podem pensar que sou uma pessoa obcecada, mas pouco me importa. O que eu gosto é de cumprir com aquilo que programo. Eu devo obediência aos meus princípios. Para mim os princípios são tudo. É como a moral. Ou há moralidade ou comem todos. Pois bem, se cada um cumprir com aquilo que determina a mais não é obrigado. E isso é muito importante numa sociedade. Especialmente se ela for desenvolvida e democrática. Ou democrática e desenvolvida, que é o mesmo mas com as palavras trocadas. Trocar as palavras também é muito democrático e até se pode considerar um sintoma de desenvolvimento. Por isso Portugal é um país tão desenvolvido. Fora de brincadeiras. Os portugueses gostam muito de trocar as palavras. Gostam até de trocar a palavra. Palavras leva-as o vento, mas a palavra só a leva o dinheiro. O dinheiro é sagrado. Bem assim como a palavra dada. Só que se for dada também pode ser arregaçada. Mas palavra arregaçada é chão que já deu uvas. Agora já ninguém dá uvas. Só os bons dias. E isso se o passeante estiver de bom humor. Está cara a palavra. É como a gasolina. Mas a gasolina serve para fazer andar os carros e as palavras não fazem andar nada. Pelo menos à primeira vista. Porque até há palavras que fazem andar, especialmente os animais. Bem, não são bem palavras, são a modos que onomatopeias. As onomatopeias são engraçadas. Eu gosto muito de onomatopeias e de outras coisas. Gosto de andar de comboio. Gosto de acordar cedo quando programo acordar cedo. E mais vale cedo que tarde. E mais vale tarde que nunca. E gosto de cumprir com a palavra dada. Mas é vício, porque agora já ninguém cumpre nada. E também para que serve cumprir com a palavra dada. Palavras leva-as o vento e o vento nada me traz, o vento é pensamento e voa com ele próprio. Isto quando há vento, porque se não houver vento as palavras ficam no mesmo lugar e o pensamento fica a modos que congestionado como o trânsito nas entradas das grandes cidades. O problema do trânsito nas estradas das grandes cidades é uma coisa muito séria. Por vezes apetece-me rir quando oiço essa informação na rádio. E penso: porque raio é que as pessoas só querem ir para as grandes cidades? As cidades grandes são também um assunto muito sério. Muito sério mesmo. Penso até que é um dos assuntos mais sérios que há. Mas a cavalo dado não se olha o dente. E por hoje é tudo.
João Madureira