Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

22
Jul24

Quem conta um ponto...


avatar-1ponto

 

691 - Pérolas e Diamantes: Houve tempos...

 

Houve tempos em que os cinemas eram como catedrais, imensos auditórios. Com cortinas fechadas sobre os ecrãs próprios para os 70 milímetros. Eram vastos mundos de ilusão, onde as pessoas se podiam refugiar. Os cinemas eram uma nova religião. Capazes de nos modificar, de alterar a nossa perceção. Olhávamos para os ecrãs e partilhávamos momentos de transcendência, ilusões, desilusões. E medos. Eliminávamos alguns medos durante algumas horas. E pensávamos que éramos felizes dentro da nossa infelicidade intermitente. Éramos como voyeures controlados, sentados na escuridão a olhar para sentimentos e existências secretas. A vermos coisas que não devíamos estar a ver. Antes de o filme começar, as luzes iam diminuindo lentamente, ainda que faltassem alguns minutos para a cortina subir. Quando o pano ascendia, o ecrã iluminava-se de repente. Primeiro viam-se trailers, depois notícias do mundo, a seguir desenhos animados e, por último, o filme. A rapaziada, e a gente de menos posses, sentava-se na plateia. Os mais endinheirados iam para a tribuna, que era o balcão da sala, para onde se entrava pelo piso superior. Muitas das vezes saímos do cinema desiludidos, outras consolados, divertidos, ou ainda com vestígio de lágrimas nos olhos. Umas vezes éramos cowboys, outras heróis de Kung Fu. Umas vezes amantes, outras amados. Umas vezes crianças, outras adultos. Umas vezes heróis. Outras vezes vilões. Tornávamo-nos personagens nem sempre agradáveis ou fáceis de controlar. Ao nível dos sentimentos. Nos filmes de ação e nos cómicos ouviam-se frequentemente gritos e risos exagerados. As verdades eram inocentes. Pelo menos era isso que pensávamos. O cinema também era um bom pretexto para beijos rápidos e apalpadelas nas coxas das namoradas. Muitos adolescentes criavam as suas próprias fantasias baseados naquilo que viam no cinema e liam nos livros. O sexo era muito limitado, pois as jovens de então eram muito cautelosas e os jovens pensavam-se agentes secretos. E os contracetivos não estavam logo ali à mão de semear. Tinha que se ir à farmácia. E a terra era pequena e toda a gente se conhecia. E todos gostavam de cochichar. O ambiente era opressivamente conservador e as famílias ostensivamente religiosas. As pessoas jogavam jogos de aparências e faziam questão em manter a discrição. Apesar disso, as raparigas usavam bandoletes na cabeça e minissaias e os rapazes cabelo comprido e calças à boca de sino. Era uma forma de imitar o mundo exterior e de disfarçar a frustração. As fantasias sonhadas, quando pronunciadas, soavam irónicas e falsas. Os nossos sonhos estavam reclinados nas cadeiras das piscinas dos filmes franceses. Quando estávamos em grupo, fazíamos poses como se estivéssemos em frente do fotógrafo na cerimónia da comunhão solene. A sorrir para a câmara. Ninguém queria ficar mal no retrato. Muitos falavam ininterruptamente e todos fumavam. Muitos julgavam-se fabulosos e radicais. Mas eram apenas pose. Pensavam-se bonitos, mas eram apenas aleatórios. O ambiente era claustrofóbico, como se estivéssemos dentro de um armário. A realidade era entediante, mas não havia outra opção. Havia muitos bêbados. Bebia-se mais vinho do que água. Muitos descontrolavam-se, ficavam meio zangados, e outros caíam para o lado ou adormeciam. Os que se julgavam mais radicais, pronunciavam as palavras com muito desdém, perguntando ou respondendo com esgares desdenhosos e exagerados. Gestos súbitos costumavam inflamar-lhes a fúria. Era normal acabar tudo à porrada. Depois aparecia a polícia, as mulheres e os filhos dos que eram casados a gritar e os cães vadios a ladrar. Os mais discretos abriam então as mãos e acenavam como se fossem alienígenas notívagos e punham-se na alheta. As outras narrativas da cidade eram de idêntica idiotice. Também as havia de escárnio e maldizer, a cargo dos diversos poetas do burgo. A realidade doía como ferida aspergida com sal. Claro que havia causas e efeitos, mas as ligações não estavam ao alcance da maioria. Tudo parecia aleatório, irrelevante, enfadonho, triste. E era-o de facto. Uma coisa vos digo, é muito difícil sair deste tipo de realidade ileso. Essa realidade era muito parecida com um filme de Béla Tarr, especialmente de Sátántango. Boa para filmes a preto e branco, mas dolorosa na vida real.

João Madureira

 

 

3 comentários

Comentar post

Sobre mim

foto do autor

320-meokanal 895607.jpg

Pesquisar

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

 

 

19-anos(34848)-1600

Links

As minhas páginas e blogs

  •  
  • FOTOGRAFIA

  •  
  • Flavienses Ilustres

  •  
  • Animação Sociocultural

  •  
  • Cidade de Chaves

  •  
  • De interesse

  •  
  • GALEGOS

  •  
  • Imprensa

  •  
  • Aldeias de Barroso

  •  
  • Páginas e Blogs

    A

    B

    C

    D

    E

    F

    G

    H

    I

    J

    L

    M

    N

    O

    P

    Q

    R

    S

    T

    U

    V

    X

    Z

    capa-livro-p-blog blog-logo

    Comentários recentes

    • Anónimo

      Obrigado. Forte abraço. João Madureira

    • cid simões

      Muito bonito.Saúde!

    • Rui Jorge

      Muito Bom Dia a todos. Encontrei este blog e decid...

    • Luiz Salgado

      Sou neto do abilio Salgado e Augusta de Faria Salg...

    • Luiz Salgado

      Meus tios Abilio e Abel Salgado , sou filho de Hen...

    FB