Quem conta um ponto...
693 - Pérolas e Diamantes: A dor
Estou longe do mar e cheiro o longo instante das ondas e o frio das suas águas e vejo o terceiro minuto depois da partida e penso que tudo exige atenção e paciência e que é preciso vigiar o voo das gaivotas e a fé e as suas mudanças de cor e depois o ar começa a pousar sobre a areia e o sal a pegar-se à pele e nós a metermos no bolso o dia acabado de passar e a respirar devagarinho enquanto os pinheiros estremecem e as mulheres vocalizam oscilações e uma espécie antiga de vontade de chorar não de tristeza nem de alegria mas de um terceiro sentimento enquanto os velhos jardineiros tiram de dentro das luvas as suas mãos impregnadas de raízes e caules e folhas e flores e nuvens de forma vagarosa enquanto fecham os olhos para não chorarem e abrem a boca como passarinhos para se alimentarem de memórias que as suas mães lhes deixaram dentro da cabeça e assobiam e respiram e orvalham bocas sequiosas enquanto a noite se levanta e os dedos dos jovens desmontam pétalas e constroem paciências e falam entre si enquanto os grilos dentro das gaiolas começam a cantar e a comer-se uns aos outros por falta de espaço e os homens retiram da cabeça os chapéus como se fossem indignos de felicidade enquanto escutam sons murchos e então eu finjo acanhamento e delicadeza e imagino campos semeados de ternura e a Marquinhas da Ajuda a rezar o terço e a embaciar a redoma de vidro onde está a sagrada família feita de barro e a avó a acender os pavios de azeite enquanto chove nas pálpebras do pai que continua a fumar enquanto os cães acendem os seus latidos e os rapazes púberes sonham com nádegas das deusas gregas enquanto as mulheres maduras vão a caminho da missa e o sacristão toca o sino e os perus cantam glu glu glu e o sacristão toca dlão dlão dlão e o pai não diz nem sim nem não louvado seja o senhor e o nosso entusiasmo e o nosso fervor e a nossa admiração por Lázaro a crescerem que depois de ressuscitar logo se vai pentear e pôr brilhantina e eu a colecionar exatidões e declarações proféticas e a fazer crescer e a encolher a imaginação como se estivesse distraído ou à procura de algo que é difícil de encontrar como uma genitália em descanso à beira-mar enquanto os guerreiros fazem intervalos dos seus dramas e os garotos gritam como se tudo fosse ao mesmo tempo precário e divino enquanto os pirilampos mágicos iluminam nossas senhoras de alumínio pintadas à mão e depois começo a gostar de sopa de nabiças e a dizer palavras que consigo colocar entre parêntesis e a reparar nas rugas do pai e da mãe e a encher os bolsos com rebuçados e a dar migalhas de pão ao pintassilgo e a pendurar-me na porta da cozinha para levantar a espinhela ao mando das orações do Birtelo e depois a apalpar o bolso de trás das calças para sentir a fisga pronta para intercetar o voo dos pássaros assustados e o enfermeiro à espera que eu desça as calças para ficar com as nádegas ao léu para ele espetar a agulha da seringa e eu a marcar olhares e a imitar gestos e a lavar os dentes e o pai a fazer a barba com a gilete e a avó a rir-se para as horas infinitas e tudo a crescer depressa e eu a caminhar devagar e o tempo a crescer e o romance a acabar e o amor a ficar cada vez mais carnal e eu a precisar de silêncio e o pobre pai a morrer tão depressa e a sua morte a irromper de súbito pelo meu presente enquanto os acasos se vão formando da soma de várias partículas e a noite a falar comigo e eu a desfazer-me em angústia e a reconhecer cores e cheiros e luz enquanto tudo fala comigo e a casa de banho a encher-se de vapor e pavor tudo traduzido em surpresa e tonturas e lágrimas nos olhos dos pecadores que iluminam as ideias e a mãe a desfalecer e o pai a morrer depressa e a provocar-me dores terríveis no peito e eu a tentar escrever sonetos a Cristo e as rimas a caírem-me das mãos como se fossem chumbo e eu aos encontrões à tristeza e a enfiar nos bolsos rotos as catástrofes e as desgraças e o avô a dar pontapés no oratório e eu a riscar as palavras do catecismo enquanto a dimensão religiosa se vai perdendo como as notas produzidas pelas teclas de um piano enquanto a vida vai ficando cada vez mais cheia de uma ternura insuportável e repleta de páginas e páginas de espelhos que nada refletem e o meu olhar a voar sobre o mistério das coisas e o olhar a encravar e a encravar e a… que dor insupor… tá… vel…
João Madureira