Quem conta um ponto....
696 - Pérolas e Diamantes: Tiagos e serafins...
Para o bem todos os cuidados são poucos. Pois quase sempre se tem de romper por ele dentro, quer chova ou faça sol. Além disso é necessário ter fé. Senão ninguém aguenta isto. E ter instinto de sobrevivência, também. Quando soa a hora há que sair da cama. E pouco importa que chiem os carros e ladrem os cães. Cantam os galos para aí duas vezes e meia e o tranglomango põe-se de viagem e atravessa as poldras para cortar caminho. A voz da negação ficou rouca. Pedro ficou afónico senão, além de Jesus, também negaria Tomé e os dois Tiagos e João e Filipe e André e Bartolomeu e Mateus e Tadeu e Simão e Judas Escariote. Agora já não há contrabando, nem contrabandistas. Apenas existem comerciantes e homens de negócios. Só rumores e açudes de conveniência. Debaixo das pedras apenas sobrevivem lacraus e grilos brancos. Depois do roubo, há que esconder o seu fruto bem escondido. Mas os ladrões de agora já nem isso fazem com préstimo e enfiam-no em livros. Andam todos à coca. E relincham os burros porque querem ser compreendidos pelos cavalos. E zurram os cavalos porque pretendem ser entendidos pelos burros. E desentendem-se os homens. E o Demo a rir-se dos parvos, que somos nós todos. E os pobres a lazarar, pois, dizem as estatísticas, apenas no pequeno retângulo luso, são para aí mais de um milhão. Afinal, o sol da democracia, mesmo quando nasce, não é para todos. Para eles há mais eclipses do que os estudados. Há muito cuco a cantar pelos pinheirais. A consumição leva-lhes anos de vida. O problema é se não houver mão benigna que os contenha. Há cerca de cinquenta anos que lhes andam a dizer para terem paciência que de perto se vai ao longe. E eles sem saírem do lugar, sempre a andar à roda como o burro na nora. Com tanta cantoria, parece que estamos na aldeia nos tempos da velha senhora. Canta o galo, cantam as pegas, as melras e depois os rouxinóis. Seguem-se as rolas, o cuco e a poupa. Cantam os senhores abades o tantum ergo e chiam os eixos dos carros de bois. Vergam-se os homens e as mulheres na grande comédia da sujeição. E as vacas a ruminar e o vento a soprar e o sol atrás das nuvens a fazer-se de engraçado. E o Menino Deus lá na igreja à espera que o deitem nas palhinhas porque o Natal lá virá no dia certo. As grandes vacas benzia-as Deus Pai. As enfezadas tinham sido sopradas pelo Demónio. Os doutores possuíam muitas, mas poucos eram os que sabiam jungui-las. Tropicavam pelas lajes dos caminhos os tamancos ferrados, a caminho da feira. Em tempo firme costumava soprar o vento-cieiro, que varria as várzeas e levava, ou trazia, o som dos sinos. Era o tempo em que os garotos despertavam cedo das suas enxergas com a pila arrebitada por causa da bexiga cheia e a iam despejar fora de portas, ou vertiam águas mesmo da própria soleira. Havia muito remediado que era amigo de acudir a um pobre numa precisão. Um rico nunca o fazia. Havia mais pecadores que pecados. E todos os anos se dava uma epifania de Reis Magos, tontinhos todos três, atrás do ramo do cometa. Eram tempos em que as doceiras iam com cestas à cabeça para as feiras, os camponeses conduziam novilhos à corda e as mulheres mais afoitas seguiam por esses caminhos fora sentadas em burrinhas passeiras. Havia papagaios que arremedavam o cacarejo de galinhas poedeiras e homens que arremedavam os papagaios brejeiros. E as mulheres engravidavam muitas vezes e nem sempre dentro do casal. Havia muitos faunos à solta por esses bosques fora. Erguiam-se procissões por essas freguesias adiante cumprindo com votos antigos. Alçava-se cruz por tudo o que era outeiro. Os andores tinham andadas, umas sobre as outras, como se fossem torres. Muitas vezes era necessário esgalhar as árvores dos caminhos para eles passarem. E, em dias de festa, os serafins lá do céu, dançavam ao som da tocata dos clarinetes e dos pífaros. Em dias de romaria comia-se e bebia-se à tripa forra. Lá para o fim do arraial era certo e sabido que os da banda de cá, já bem bebidos, pegavam nos seus varapaus e iam pegar-se com os da banda de lá e acabava tudo à porra e à massa, como era tradição. Muitas vezes, era necessário ir buscar o médico que ficava a pernoitar na casa do padre para o que desse e viesse. Ainda me lembro da última vez que fomos com o meu pai à festa da Torre de Ervededo. Ele disse de forma premonitória: “Vinde à procissão que lá vai a sair. Vinde que pró ano já cá não estou.” A minha mãe balbuciou: “Olha lá saem os andores…”, enquanto lágrimas grossas lhe corriam pelo rosto.
João Madureira