Quem conta um ponto...
701 - Pérolas e Diamantes: Inspirações e expirações
Nós andamos na vida a contar histórias uns aos outros, poucas delas verdadeiras. Apesar dos nossos semblantes civilizados e cheios de pudor. Muitas são fruto da nossa fantasia, outras tantas são contadas por outros. Todos sabemos que é muito duro convencer os céticos. Por vezes é difícil fazer encaixar uma história na anterior. Por vezes, as coincidências são bem-vindas, outras vezes nem tanto. Há que dosear as revelações, se não a história chega rapidamente ao fim e lá morre a Xerazade. Os lapsos de atenção fazem o resto. Por vezes, a nitidez das recordações faz com que as histórias percam a espontaneidade e até tenham pouco a ver com o que verdadeiramente aconteceu. Delas nascem as melhores histórias. Nelas, a prosódia fica entaramelada, as inspirações e expirações adquirem ritmos estranhos e as consoantes fricativas passam a ser ciciadas como se tivessem um sabor excêntrico. Já a poesia, sobretudo a minha, baseia-se na penitência e no peso da contrição. Não foi em vão que o menino aprendeu a ler pelas orações dos santinhos, ao som cadenciado das rezas da mãe. Em muitas histórias falta liberdade criativa e sobra o tédio convencional. Há histórias que são velhas e parecem navios lentos. Outras limitam-se a contar a verdade dos factos e por isso parecem anémicas e pálidas. Outras, ainda, possuem tantos detalhes e berloques que se assemelham a toalhas de mesa bordadas à mão. Existem ainda histórias tão doces e naturais que parecem tratados de física e química escritos para crianças e jovens. E eu a matutar na gente do bairro. E nos Nunos, e nos Franciscos e no Joões e nas Marias e Rosas e Fátimas, que tentam arranjar, ainda a tempo, uma identidade bem próxima da nossa, que também nos chamamos assim, mas não somos assado. Tudo parece quase autêntico, fora as mentiras. As mentiras não traem as expectativas. As famílias do bairro não traem os traidores. Por vezes, são os sorrisos, quase adolescentes, que traem. Os traidores. Que nos enganam. Ou quase. Eles, e elas, que nestas coisas são vinho da mesma pipa, então levantam-se, saúdam-nos com um afeto afetado, e quase eufórico, e sorriem com uma plasticidade tão falsa que nem o botox engana. Mas aquilo não passa de espuma de sangria feito com gasosa de marca branca, vinho frisante e cerveja quase fora de prazo. A sua fraternidade tem a sinceridade de Judas, ou Brutus. Ou Salomé. É difícil não gostar deles, pois são homens e mulheres sociáveis, quiçá expansivos, mas de uma ingenuidade que nada tem de ingénua. Mas, caros amigos, a sua integridade é apenas formal. A sua argumentação amalgama a verdade. Trabalham sem conceitos. Quem mantém a realidade dos factos à distância, não é gente de confiança. Tudo nos pode parecer aleatório, só que o não é. Por vezes até entram na divisão da casa onde costumava estar a verdade, mas ela já lá não se encontra porque a mandaram para a reciclagem. Dizem que o homem democrático deve ser artista. Mas a forma da criação artística exige disciplina mental. Isso implica ter de fazer escolhas independentes, que é algo fundamental na gestão de uma democracia. A gestão de uma instituição não obriga à traição. Dos princípios. E até da amizade. Por vezes não é a constituição frágil de um escritor o que define a robustez da sua escrita. É sempre melhor a experimentação do que a imitação. Essa é a base da verdadeira aprendizagem. Eu continuo a querer abrir os olhos, mesmo quando mos querem fechar. A modinho. Era o que mais faltava. Eles que se benzam na água benta turva com que enchem a caldeirinha com que borrifam a multidão. Apesar da verborreia, as alusões culturais parecem imagens paradas colocadas de forma sequencial para simularem movimento. Depois anexam-lhe os títulos. E já está. Eu não preciso da sua permissão para continuar e pensar. E muito menos para continuar a escrever. O aconselhado seria fazerem eles uma colonoscopia à sua prosápia. E sem anestesia geral, para saberem como essas coisas doem. Que se benzam, que se confessem, que se arrependam batendo com a mão no peito. Que se ajoelhem ou até que façam a peregrinação a Fátima com sapatilhas topo de gama, aos tropeções. A salvação não é uma coisa que se compra na farmácia ou no supermercado. A salvação é uma história. E por aqui andamos nós a contar histórias uns aos outros, poucas delas verdadeiras…
João Madureira