Quem conta um ponto...
703 - Pérolas e Diamantes: Os desunhados e os estúpidos
As reuniões daqueles que se desunham para mandar lembram-me sempre a última ceia de um bom homem a quem apelidaram de Jesus, o Nazareno. São sempre treze, os que se reúnem à volta de uma mesa, podendo até ser mais, ou, provavelmente, menos. Ou mesmo assim-assim. Sorrisos mordazes, apóstolos a toleimar, e sempre as especulações votivas de quem é que vai trair primeiro o homem. E depois a ideia. A sala de reuniões parece sempre cheia de apaniguados, mas vazia de amizade. A fé é sempre um vestígio. Eu gosto de pensar que se nelas participasse, não trairia. Que seria fiel ao espírito… da coisa. Eu o guardião da verdade e dos factos. Mas a história acaba sempre por dar-nos açoites. Os tais amigos, uns dos outros e de ninguém, são nomes rabiscados em listas de endereços. Os cúmplices estão na lista restrita do iPhone. A traição e a fidelidade não são noções nítidas. Antes fossem, mas… Mas depois cada um mergulha na retórica, na dialética, e os de mais posses acabam mesmo por mergulhar na água clara e desinfetada da piscina lá de casa. A cada um o seu silêncio e o seu esplendor. Exercer esse direito ao ócio é um prazer. Imenso. Do velho registo guardei várias memórias que no presente me ajudam a escrever e a publicar livros. Que as uns servem para leitura e a outros auxiliam a chegar fogo à lareira onde aquecem as partes, comem o presunto com pão centeio e bebem vinho que, mesmo avinagrado, não possui a acidez acintosa da sua frustração e do seu desconchavo. Todos temos o direito à estupidez. É um direito tão democrático como qualquer outro. Cada um tem as suas próprias experiências, os seus anseios legíveis e ilegíveis, a sua sintaxe, o seu ritmo. E a sua própria estupidez. O exercício da palavra pode ser belo, mas o exercício do silêncio acaba sempre por ser mais avisado. A estupidez não pede desculpa, não faz cerimónia, intromete-se. Não respeita, fala alto. Há pessoas que não cabem dentro da sua própria pequenez, da sua irresolúvel mediocridade, da sua conformista visão do mundo. Da sua própria grosseria que disfarçam com verborreia sintética, com gravatas inverosímeis, com fatos azuis e pines comemorativos e autorreferentes. Ou até com calções e chinelas ortopédicas. Muitas vezes somos forçados a pedir desculpa à estupidez para que a estupidez não tome conta das discussões. Uns não percebem as perguntas que não têm resposta e outros não entendem as respostas que não exigem perguntas. Não devemos interpretar a inocência da estupidez ao pé da letra. Nem subestimá-la. Os que se desunham para mandar e os estúpidos mais intrépidos normalmente levantam-se para falar, empregam palavras bem-soantes mas têm sempre pouca coisa para dizer de relevante. Prestam-se à eloquência, mas estão vazios por dentro. Todos somos vítimas dos concursos de circunstância, das decisões dos outros, dos golpes de sorte. E de azar. Andamos sempre em círculos. Os desunhados e os néscios têm os olhares enviesados e os pensamentos cheios de arestas. Olá, eu sou o João, este nome vem de longe, na minha família. Há pelo menos um João em cada geração. Vá lá, estou aqui para contar histórias. Estou farto de ser interrompido. A dialética incomoda-me. E o resto também. Sei perfeitamente o que tenho de fazer: olhar em frente, atravessar a rua, virar na direção do meu destino, manter a lucidez necessária e suficiente para aguentar o firme fio das recordações. Tento mais uma vez entender quantas partes de timidez, quantas de ceticismo e de pudor são necessárias para manter a prosa escorreita. Apesar da acintosidade de alguns, dos tais que até se desunham por mandar, é aqui que quero continuar a viver, é aqui que quero terminar os meus dias, porque, bem vistas as coisas, é aqui que estão as minhas raízes. Foi aqui que a minha prosa começou a ganhar substância, equilíbrio e alguma profundidade. E, talvez, mesmo uma certa simetria ficcional que a aproxima da realidade. Incomoda os desunhados? Bendita seja ela, pois vai continuar a incomodá-los e também a dar de beber aos leitores que fazem o favor de a considerarem escorreita, límpida e sincera. E verdadeira. Sim, também verdadeira. Eu conheço muitas almas e também muitas ruas. Na nossa terra, caros concidadãos e estimados leitores, da realidade mesquinha pouco sobra para especular e extrapolar. Aqui, as experiências novas são como os anos bissextos e as atividades culturais possuem a consistência do fogo de artifício. Pois, mais nada me resta do que continuar a ver os que se desunham pelo poder a deitarem os foguetes e os seus apaniguados a irem apanhar as canas. Um recado lhes deixo, tenham cuidado com as bombas do foguetório pois algumas costumam rebentar com atraso e decepar os dedos das mãos.
João Madureira