Quem conta um ponto...
704 - Pérolas e Diamantes: Vamos lá ver se percebemos...
Vamos lá ver se percebemos isto de uma vez por todas: atualmente, a maior ameaça à democracia não é o crescimento da direita radical, mas a perda de legitimidade dos governos que subjazem ao crescimento dessa mesma direita radical. É avisado escutarmos o que George Washington disse no seu Discurso de Despedida: “Basta ver o cortejo de artimanhas gerado pelo espírito partidário para um povo sábio perceber que é do seu interesse e é seu dever desencorajá-lo e reprimi-lo.”
Os partidos estão essencialmente obcecados com a ideia de derrotar os seus opositores em vez de se concentrarem em erguer o país. Stephen Marche, no seu livro “A Próxima Guerra Civil” escreve que “o hiperpartidarismo destrói o sistema partidário, em seguida paralisa a capacidade legislativa de pôr em prática políticas e, por fim, consome os símbolos nacionais”.
Mais do que uma fé, a democracia é uma ideia baseada na tolerância e na compreensão. E convém não esquecer que o hiperpartidarismo coexiste com um ambiente informativo tóxico e irresponsável. A instabilidade é agora muito mais radical, independentemente de quem esteja no poder.
As catástrofes não surgem do nada.
Por incrível que pareça, vivemos numa parte do mundo onde a comida é relativamente barata, as cidades são seguras e a sociedade ordeira. Mas os preços baixos, a segurança e a ordem não podem durar. Os sistemas que regulam as nossas vidas, e que consideramos garantidos, estão cada vez mais instáveis. A vida dos portugueses está destinada a ser muito mais precária no próximo meio século. E pelo que se vê, as pessoas comuns estão-se nas tintas.
Ou seja, as novas gerações vão viver pior do que as precedentes. A presente geração de portugueses já sente, e continuará a sentir, o declínio no decurso das suas vidas.
O problema atual é o tédio. Depois da pandemia tudo parece relativo. Até porque os resgates financeiros como aquele a que fomos sujeitos pela Troika + Passos Coelho são inevitavelmente injustos. As pessoas que mais pouparam, ou seja, a classe média, foram as que mais sofreram.
Os irresponsáveis são os primeiros a receber ajuda. A desigualdade alimenta a crise e a crise alimenta a desigualdade. A desigualdade não tem solução à vista. O próprio comunismo (essa utopia manca de uma perna e coxa de outra) limitou-se a diminuir a desigualdade destruindo a riqueza.
Um dos maiores defeitos da democracia é ser incapaz de evitar a eleição dos maus e dos medíocres. Mesmo depois de serem vítimas das suas fraudes e mentiras, o povo tende a perdoar estes seus dirigentes. Por vezes até os elegem para novos mandatos.
A crise não abranda, apenas se dissemina e banaliza. Ou seja, a democracia neoliberal parece ser autofágica. A sensação dos eleitores em democracia é que quando votam em quem perde, perdem; e que quando votam em quem ganha continuam a perder.
As prebendas e os lugares de destaque, aqueles que dão acesso ao dinheiro e ao poder, estão destinados a uma minoria: a elite partidária. E isto é verdade tanto para a esquerda, como para a direita e mesmo para o centro. A virtude não está em nenhum lado.
Voltamos a repetir, para que fique claro: atualmente, a maior ameaça à democracia não é o crescimento da direita radical, mas a perda de legitimidade dos governos que subjazem ao crescimento dessa mesma direita radical.
O poder democrático, por incrível que pareça, está a tornar a política irrelevante. As nossas elites políticas vivem em condomínios fechados. É aí onde tudo se negoceia.
É verdade que a máquina da nossa democracia (também conhecida como sistema democrático) continua a funcionar. O país vai a eleições, cada vez em períodos mais curtos. Os partidos ditos democráticos alternam-se no poder. Mas têm cada vez menos importância.
A estratégia do poder executivo baseia-se em contornar o Parlamento. O que outrora era uma exceção é agora uma atitude aceite por uma sociedade exausta pelos jogos partidários e pelos casos semanais de corrupção.
Estamos em crer que a legislação que insiste no combate à corrupção foi escrita por corruptos. Ou por escritórios de advogados pagos a peso de ouro, com ligações privilegiadas ao poder central, de inspiração nitidamente partidária. É aí que reside o bloco central.
Quase toda a informação noticiosa é propaganda. O bloco central também domina esse negócio.
Há muitos eleitores que dizem: “Isto já não é uma democracia.”
Provavelmente andamos todos a fingir. Ou a fugir à verdade.
João Madureira