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CHAVES

Olhares sobre o "Reino Maravilhoso"

10
Mar25

Quem conta um ponto....


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721 - Pérolas e Diamantes: O mundo é um lugar estranho...

 

Nunca são os inimigos que nos traem. O mundo é um lugar estranho. E as pessoas ainda o tornam mais estranho. “Vá lá, João, mostra alguma gratidão”, diz-me a minha cigarra falante, que gosta de rimar. “Vá lá, enfim!” E lá vou eu em direção às ruínas. À Torre de Ervededo. Vá lá, não vale a pena falar sobre nada. A pendente da encosta das memórias é tão inclinada que dá vertigens. Os estreitos carreiros de outrora já não vão dar a lado nenhum. Nem eles. Nem eu. As palavras não são exatas. Nunca o são. Nem os sentimentos. Nem as memórias. A Torre ainda não é uma ruína, mas está a desmoronar-se. A minha memória de menino fica à porta da velha casa. Oiço um ruído surdo e prolongado. Os alicerces da memória estão em vias de ceder. Os lábios da mãe mexem-se, mas não dizem nada. Borboletas noturnas voam na direção dos seus olhos, que se fixam nos olhos do pai. O pai penteado. A mãe desgrenhada. O pai fuma. A mãe canta. O vestido da mãe é preto, com uma risca branca no colarinho. Para os idiotas todo o saber é idiotice. O vestido desce até ao chão, dando a ideia de que ela não caminha, mas apenas desliza. É linda. A minha mãe é linda. A minha mãe. É. Linda. Apesar de agora ser apenas uma fotografia que sorri. O mundo é pequeno para tantos tolos viverem nele, não é mãe? Muitas mulheres, homens e crianças, que habitam nos meus sonhos, dormem junto ao rio, olhando as estrelas. A mãe parece estar agora amarrada no céu. Presa. O som de um trovão soa ao longe. Acordo dentro do sonho. A escuridão chegou durante a madrugada. A memória mais recente está a devorar a mais antiga. Temos de continuar a procurar utilidade para a vida, pois sentido não tem. Alguém a tirou do texto. Uma coisa é escrever histórias. Outra, bem diferente, é acreditar nelas. Ninguém come ficção, a não ser os anjos. E os demónios. Não é fácil suportar a verdade. E aqui estou eu a perder o ânimo com a violência do mundo. A voz da avó eleva-se sobre o ruído do vento. Eu corro pelo soalho. O vento lá fora desapareceu. Ando à procura de algo de novo, mas não é hoje que o vou encontrar. Os reencontros podem ser como tempestades. “Sai daqui. Sai daqui, já!”, diz a avó. “Eu nunca cheguei a entrar”, respondo. Acordei a meio da noite no meu quarto ainda às escuras. Pensei que tinha acordado por causa do pesadelo. Mas foi a avó que entrou dentro do meu sonho para me acordar. Sinto o cheiro intenso de flores a arder. Esta história não obedece a plano nenhum. Provavelmente é por causa do cachimbo de ópio do Camilo Pessanha. Uma flauta chora. A mãe também chora. E o pai. E a avó. E eu também choro. Há sonhos grandes e há sonhos rápidos. Este não é nem uma coisa nem outra. É outra coisa. Que noite lenta, esta! Faço um enorme esforço para não deixar cair no poço do esquecimento certas imagens que continuam a habitar a minha memória. Pisco os olhos e vejo tudo baço. Não me olhes assim, mãe. Eu não tenho resposta para as tuas perguntas. Apenas os homens mentirosos te conseguem responder. A eles tanto lhes faz. A mim não. Lembro-me de dançar sozinho ao som da rádio lá de casa. O Mário ainda era vivo. E parecia alegre, até ao momento em que colocou a Mauser debaixo do queixo e apertou o gatilho. “Porquê?”, perguntas tu, mãe. Pois não sei. Só sei que deixei de dançar ao som da música que ouvíamos no Siera lá de casa. E deixámos de embebedar o peru para servir na ceia de Natal. Ou na consoada. Ou no dia de Ano Novo. Não sei, mãe. Ainda não consigo abrir um sorriso como deve ser por causa disso. A felicidade é a mestra da duplicidade. Afligi-me quando uma flor virgem me rebentou na boca. Não sabias, mãe? Às vezes acordo, aflito, entre os meus antepassados. Sim, mãe, fiquei com cara de espelho. Já não sou eu que me reflito. São os outros que gostam de se ver. Ainda me lembro de montar no burro e cair. E de ver o pai montar no alazão e correr à desfilada pelos montes fora para vir ao casamento do tio. E de me colocar em cima da sela e de eu agarrar as rédeas com demasiada força e de este se erguer sobre as duas patas e me derrubar. Foi uma vez para nunca mais. É preciso ter cuidado com as memórias. Por vezes parecem ruas direitas e as vielas prometem levar-nos onde dizem que vão, mas de repente torcem-se, serpenteiam e desembocam onde não queremos ir. Alguns desses lugares não têm retorno.

João Madureira

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