Quem conta um ponto...
726 - Pérolas e Diamantes: Podem não acreditar, mas eu... sou tímido
Podem não acreditar, mas eu, apesar de me considerarem rebelde, ou até provocador, sou simplesmente tímido, atencioso, dedicado à família e à memória dos meus pais. Sou mesmo simpático, apesar de não o parecer. Posso até dizer que a família gosta de mim. E eu dela. Nasci no Portugal profundo. No tempo em que ainda existiam fadas do lar. Nesse Portugal reservado, tradicional e respeitador, cheio de serviços religiosos, batizados, casamentos e funerais. E ouvia rádio. E também conseguia, com algum custo, imitar “It’s Now or Never”, de Elvis Presley, uma canção que não é nem blues nem rock’n’roll, mas simplesmente uma modinha napolitana, a versão de “O Sole Mio”. Sou assim mesmo, genuíno que chegue para me sentir português. Ou melhor, eu quero pensar que sim. Sou mesmo encantador, para os que me conhecem de perto. Mas também consigo ser cáustico, irreverente, revelando, quando quero e a razão me assiste, uma certa propensão antissistema. A verdade é que eu não acreditava em Deus, mas nos Beatles. Apesar de não apreciar muito a sua música. Agora já nem nesses pindéricos acredito. Deus é uma personagem dura. E os Beatles são como perucas sopradas pelo vento da desilusão. Continuo a não apreciar muito a sua música, mas continuo a gostar de gracejar, apesar de tentar fingir o contrário. Os Beatles ficaram lá atrás, nos bailes de finalistas, onde é o seu verdadeiro lugar. Mas tenho de ser sincero, só muito tarde me dei conta de que a canção “Please Please Me” é sobre sexo oral. Quem diria! No entanto, tenho de reconhecer que Sgt. Pepper’s Lonely Hearst Club Band é um “álbum com arte de capa com pretensões em superar toda a arte de capa”, como aprendi com Louis Menand (O Mundo Livre). Mas, tenho de reconhecer, também contém algumas canções interessantes. Possuo, no entanto, um pequeno defeito: vejo as coisas que os outros veem, mas de um ângulo ligeiramente diferente. Essa atitude, por incrível que pareça, faz muita diferença. Além disso, como tudo leva a supor, não tenho nenhuma vocação para mártir. O que é em tudo contraditório com o tal ângulo de visão divergente. O que algumas pessoas acham que é irresponsabilidade, não passa de desenraizamento. E eu para aqui a rufar o tambor da vulgaridade. Valha-me Deus! A pensar como posso ocupar os dias. Haja paciência! Vivo numa ambivalência hesitante, entre Kierkegaard e Woody Allen ou entre Eduardo Lourenço e João César Monteiro. Sim, eu quero sonhar que um dia ainda vou ter uma casa com um sicómoro e um pequeno jardim a servir-lhe de cenário. Não vou deixar-me derrotar pela realidade. Por vezes ela, a realidade, é colaborante. Há dias onde chega até a ser divertida. Mas, tenho de admitir, está cada vez mais gorda, confusa e derrotista. Nisso parece-se muito com as pessoas que a produzem. Tenho saudades quando ela era espirituosa, inteligente e confiante. Por vezes convivemos mal. A realidade está a precisar de fazer uma pequena dieta. E eu a necessitar de me deixar de conclusões inconclusivas. Não é fácil entretecer os nossos conceitos filosóficos com a vida quotidiana. É como viver entre a fornalha e o frigorífico. Sou uma espécie de híbrido, existindo entre a mais fantasiosa das realidades e a mais real das fantasias. Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! Ah! O que verdadeiramente interessa é o fator humano. Não é verdade? O caminho para Ítaca é sempre longo. Mas todos sabemos que a ilha fica sempre do lado de lá. A realidade, para ser lida, necessita de ser (d)escrita de forma comovente. Não é, caros amigos? Do outro lado do espelho vive sempre uma Alice. E isso é maravilhoso. Não é verdade? É complicado quando nos tornamos a caixa de ressonância da realidade e dos seus protagonistas. A pretensa ficção tende a tornar-se monótona. E também é inquietante um homem, ou uma mulher, só saber escrever e não saber fazer mais nada. O desejo pode ser sempre uma outra coisa. Parece que estou a fugir ao teor desta crónica. Mas não é verdade. O que eu quero é passear pelo campo, apanhar legumes na horta e escrever sobre a maravilha que é ter uma vida sã. O resto é muito complicado de (d)escrever. O que eu vou mesmo fazer é ir de excursão até ao meu velho refúgio da montanha. Está visto, eu não sou adito à felicidade. Apesar de a procurar e muitas vezes tropeçar nela. É como ter um cotovelo de tenista apesar de nunca ter jogado ténis. E, para terminar, uma boa ideia. Vou criar a Associação dos Preguiçosos Rebeldes. Pretendo aumentar a minha autoestima.
João Madureira