Quem conta um ponto...
728 - Pérolas e Diamantes: Confissões e Delírios (Excerto)
O pai sempre andou nas estradas de paralelepípedos, que é outra forma de dizer que lhe destinaram o caminho das pedras. Ruas estreitas e cheias de curvas. E ainda mais estreitas eram porque estavam ladeadas por altos muros de calhaus mal amanhados. E foi, ele que era um santo, perseguido e excomungado pelo C.C.C., um tal Comité de Caça aos Comunistas. Comité que era constituído por cães pisteiros e manobrado pelos ultras do regime. Eles eram cães rafeiros atrás do grande Elias. Prenderam-no mesmo antes de poder participar em colóquios universitários. Chagaram a fixar-lhe residência por tempo indeterminado, acusando-o de escrever artigos para a imprensa internacional (onde classificava as eleições de farsa, qualificando Portugal como um país subdesenvolvido) e de apelidar a guerra colonial como inútil. Tudo verdades como punhos. Depois de um périplo pela América, voltou a Portugal para ser preso. A seguir deportaram-no para Trás-os-Montes, mais concretamente para o Barroso, onde viveu em reclusão monástica, junto ao Mosteiro de Pitões das Júnias. Os jornais do regime diziam que não era português, e que a sua posição (oposição) era a de um triste traidor. Foi vítima da caça aos bruxos. Fez então muitas fotografias a preto e branco, com muita alma. Fotos que eu agora colorizo à mão com toda a paciência do mundo. Ele olha para mim com alguma admiração. Eu pelo menos penso que sim. Mas pouca diferença faz. A sala do pai é o máximo do minimalismo: uma secretária sem gavetas, um sofá sem almofadas, uma mesa sem cadeiras e uma estante sem livros. Ele também caminha para aí, sem se aperceber. Nos dias sim, diz que não faz mal abandonar o cartesianismo que divide o homem entre a razão e o coração, interioridade e alma, deixando que a pessoa humana seja encarada de uma forma mais unitária, mais complexa. Tudo isto em nome da santa simplicidade. E cita muitas vezes a Epístola de João, especialmente quando algo que vê o toca profundamente: “Não podemos dizer amar o Deus invisível se não amarmos aquilo que vemos.” Nos dias não, quando se deprime, atormenta-se, e atormenta-me, com o centro a governar, ou a fazer que governa, e com a extrema-direita a fazer oposição. Diz ele, com o seu tom professoral e filosófico: “A oposição não está a ser liderada pela esperança, mas pelo ressentimento e por tudo aquilo que ele gera. Não existindo mudança possível, é necessário procurar alguém em quem depositar a culpa. É o vazio. É o silêncio. A pobreza ideológica surge da necessidade da autojustificação do poder, da sua retórica. Hoje o comunismo é uma ideia bizarra, tantos foram os péssimos exemplos da sua praxis. Agora existe o silêncio e a indiferença a preencher esse dito espaço de utopia. Essa é a expressão de um sentimento de impotência. Hoje quase não existe na Europa diferença visível entre esquerda e direita, pois gerem da mesma maneira as exigências da ordem económica mundial, refreando a circulação dos emigrantes e dos povos forçados a fugir. É por isso que a extrema-direita se põe em bicos de pés para gritar, enquanto a esquerda radical se põe em pontas para dançar o ballet da igualdade e da ecologia. Tanto a extrema-direita como a extrema-esquerda são parasitas do sistema, queixam-se dele mas vivem dele. No século XIX, com a extensão do sufrágio, criou-se uma situação totalmente ilegítima, o casamento entre representação e democracia. Surgiu o sistema misto atual que nem é democrático nem verdadeiramente representativo. Criou-se o que agora é cada vez mais evidente, uma classe de políticos profissionais. E isto é contrário ao espírito democrático. Temos agora uma oligarquia de especialistas em poder. Existe uma espécie de escolha popular, mas dissociada da sua vontade. Não são os seus representantes que governam, mas o sistema bancário e o poder financeiro. A representação democrática é um conceito cada vez mais esvaziado de sentido. Os níveis de abstenção querem dizer isso mesmo. Os sistemas estão de tal forma habituados aos partidos institucionalizados e aos especialistas do poder que ninguém se arrisca a defender uma força democrática real e durável. A política é feita de palavras. E isso cria assimetrias variáveis. Se ensaiarmos sair de dentro da lógica da linguagem consensual, as pessoas não nos entendem.” Pausa. “Estás a ouvir?” Pausa. “Sim, pai. Estou a ouvir-te. Ave Maria cheia de graça…” “Pai nosso que estais no… Ainda hás de sentir muito a minha falta…”
João Madureira