Quem conta um ponto...

747 - Pérolas e Diamantes: Confissões e Delírios (Excerto II)
Haiku (transmontano) número oitenta e quatro: A primavera / volta sempre / quando o vento oscila.
O hebreu Moisés estabeleceu em número de 10 os mandamentos, isto após escutar uma voz que lhe vinha de uma sarça ardendo no meio das trevas, no monte Sinai. Mas foi o papa Gregório I, o Grande, quem estabeleceu em sete o número de pecados mortais: Soberba, Inveja, Ira, Preguiça, Avareza, Gula e Luxúria. O que agora sabemos é que a neuroplasticidade não possibilita ao cérebro humano distinguir mais do que sete informações em simultâneo. O meu pai (adotivo) passou uma parte da sua vida concentrado num cenário pós-religioso e na luta entre o bem e o mal. É aquilo que nos incomoda o que nos leva a pecar. Várias vezes o ouvi a citar o filósofo Pierre Bayle: “A inclinação a fazer o mal não se encontra mais numa alma destituída do conhecimento de Deus do que numa alma que conhece Deus.” Foi ele que separou a fé da moralidade. A nós cabe-nos a tarefa de nos preocuparmos com os males de que somos responsáveis. Deus, a existir, tomará conta do resto. Diz o pai que o que nos leva a ter comportamentos egoístas e antissociais é o excesso de dor social. Provavelmente, o pecado é inato em nós. Agostinho de Hipona confessou em livro que roubou peras, fazendo disso a exegese que distingue um comportamento banal de outro abominável. Eu, também o poderia confessar, mas, por sorte, não roubei peras, fiquei-me pelas maçãs, pelas cerejas e um que outro melão. Já o pai nunca roubou nada, nem sequer uma pedra ao rio. E ele tinha tantas! Eu sigo a percursora ingenuidade de Montaigne, fingindo confessar as suas falhas, pois teve sempre o cuidado de revelar apenas as que eram adoráveis. Ou seja, Montaigne foi o melhor mestre dos políticos atuais, pois pretendia enganar as pessoas dizendo a verdade. Ele demostrou que isso era possível. Defeitos adoráveis, qualidades desprezíveis. O pai diz, e eu concordo, que os romancistas clássicos são, além dos melhores, os maiores produtores de lugares-comuns. Os seus romances estão repletos de enormes descrições e de personagens comoventes e odiosas. E daí não saem. Existem lá pelo meio personagens ilustres e sublimes que são como ferretes na nossa memória. Os melodramas, a eles se devem. Mas como são deles, temos de os aceitar. Por isso, agora são produtos comerciais de largo espectro. Tal como os antibióticos que combatem a doença e logo se transformam num problema para uma nova infeção.
Um padre amigo do pai veio entregar-lhe uma tartaruga e o respetivo aquário, a única coisa que um casal desavindo não conseguiu repartir. Nenhum dos dois quis ficar com o bicho. O pai fez que não entendeu quando o senhor pároco lhe lembrou que ele se tinha voluntariado para ficar com o pacato quelónio. Eu já sei para quem vai sobrar a herança.
Haiku (transmontano) número oitenta e cinco: O pai e o filho / chegaram montados / num cavalo bem arreado.
O pai é feito de silêncios e palavras. De coisas hipnóticas. De demoras constantes. Os seus pensamentos vão e vêm ao ritmo das batidas do mar nas rochas. O espaço existe. E depois volta a existir. O pai tenta esconjurar o silêncio mas cada vez mais desaba dentro dele. Os crepúsculos caem sem anoitecer. Ele parece cego. O pai, por vezes, toca piano como se quisesse falar com alguém que não está presente. A inspiração vem-lhe da dor. O pai parece um desígnio de Deus, é a prova provada da sua insignificância. Da sua inutilidade prática. Coitado do pai. Coitado de Deus. Coitados de nós. “Pai, pai, vem cá. Não adormeças já. Faz-me companhia. Vem cá. Preciso de ti.”
O meu pai (adotivo) não se cansa de contar o caso hilariante de um vizinho seu que se reformou com 45 anos e que se gabava de nunca ter realmente trabalhado. Passava a vida a gabar-se de que enganava todos os dias o patrão. Quando ele o mandava fazer uma coisa, o burlão punha-se a fingir que trabalhava, fazendo tempo até à hora de sair. Ele, o pai, ri-se até às lágrimas. Eu não consigo. Sobe por mim uma raiva que me provoca uma má disposição abrangente e dolorosa.
O pai, depois de ter ido rezar, pôs-se a falar dentro da sua doença de Alzheimer: “São os povos de fronteira, aos quais eu pertenço, aqueles a quem o ímpeto religioso nunca falta. A ameaça do inimigo é sempre uma constante. A devoção dilui-se em lendas e misticismo. ‘O Quinto Império’ proposto pelo Padre António Vieira, e professado por Pessoa, que se dava muito ao ópio e ao absinto, ao vinho e à aguardente, pois o misticismo vive muito dessas dependências, é uma das propostas e das provas mais interessantes e evidentes.”
Fingir é uma arte. É a arte da mentira. O pai nunca conseguiu ser um verdadeiro artista.
João Madureira


